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Crato, Ceará, Brazil
Um buscador, nem sempre perdendo, nem sempre ganhando, mas aprendendo sempre

domingo, 28 de dezembro de 2008

O daguerreótipo

Para Valquíria foi fundado
O imediato monumento movediço
Entre o nascer e o pôr do sol
A narcose da história provisória
Construía e desconstruía em devoção
Laços de lascívias civilizadas
Em uma linha de produção impecável
Com referentes empacotados em pactos
E signos enlatados em latências
Com prazo de validade estável

Ela não quis e preferiu um
Canteiro de obras que imanava
Corredores e intumescia o derredor
E fazia chover gasolina em um pasto deposto
Nas retinas opostas das vacas canonizadas
Vapores moviam motores em
Diacronia e sincronia placentária
Ela contemplava esse novo atavismo
E ofertava os resíduos para sua prole
Em um templo erguido na sala de estar

Ela não quis e preferiu combater
A solidão com a solene transição
Dos metais preciosos para o cartão de crédito
Com a degradação dos degraus a
Linguagem tornou-se autônoma e surgiu
A necessidade de venda para os olhos
Para um sono tranqüilo surgiu antagônica
A necessidade remarcada do escuro
Tudo precisa ficar imóvel entre a
Mobília e a paisagem imobiliária


Poema dedicado a Dihelson Mendonça
Um conhecedor transcendental da
linguagem secreta da música

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008


Crônica da Cidade Imóvel

Agora, com esse nevoeiro próprio do período chuvoso, é possível o viajante vislumbrar, em descendo a Chapada do Araripe, a cidade do Crato flutuando em meio às nuvens, com uma imensa âncora pendendo de uma das suas extremidades. Para o viajante mais atento, é possível perceber, acima daquela cidade que flutua, um reflexo difuso, como em negativo, de outra cidade, como se ali existisse um espelho côncavo permanente. Agora aquele viajante que realmente descer a serra e adentrar no âmago da “Princesa do Cariri”, descobrirá que no solo, prenunciando o obscuro, existe outra cidade do Crato.

O Crato é uma cidade prima-irmã da cidade de Laudômia, trazida a lume pela mente brilhante de Ítalo Calvino, no livro “As Cidades Invisíveis”. Assim como o Crato, Laudômia são três cidades em uma, uma dos não-nascidos, uma dos mortos e outra dos vivos. Assim como em Laudômia, no Crato, as três cidades são interligadas, elas interagem de forma que existe uma permanente ilusão de que não existe em hipótese nenhuma a possibilidade desse intercâmbio existencial. Essa ilusão é tão poderosa que cria a estranha sensação de uma cidade única, poderosa, gloriosa, onipresente, completamente alheia à intensa convivência com a cidade dos mortos e a cidade dos não-nascidos. Convivência essa que se dá simultaneamente.

A cidade dos vivos, no Crato, se desprendeu da sua essência transbordada de primazia, no solo, e agora flutua bela e transcendental, por sobre uma arquitetura cinza, inebriada pelo marrom paralisante do conforme e da linhagem. O Crato essencial é uma cidade deveras ocupada, que trabalha incessantemente na manutenção e expansão do material ferroso que dá peso e significância à imensa âncora atrelada a uma das extremidades do Crato, a cidade dos vivos, que flutua, pairando indelével sempre na estranha possibilidade do seria.

A usinagem dessa âncora é feita ostensiva e orgulhosamente. Na cidade dos mortos, a essência da tradição, da família e da propriedade tem a seu dispor residências, repartições públicas, entidades privadas, fundações sócio-culturais, confrarias inusitadas e uma série de outras segregações mantenedoras da ordem, que fornecem material necessário para a usinagem desse inconsciente coletivo, logo transformado em material de largo poder de imobilização, devido ao seu peso irrefutável.

Nessa cidade mórbida existe uma eterna veneração pelo passado, existe uma entronização do tradicionalismo de forma que todo o formol produzido no mundo parece sair dessa cidade. As moedas de troca na convivência social do Crato essencial é a linhagem genética, são os títulos de propriedade e de formatura, bem como as senhas distribuídas na partilha do poder, em que só a alguns é dado a abrangência de compra da mercadoria mais barata que existe nessa cidade, o voto. Essa cidade tem a redoma opaca da religiosidade, legitimada pela presença suprema do bispado, para encobrir os escândalos políticos, econômicos, históricos, privados, públicos e notórios dos seus orgulhosos habitantes, nobres faladores da vida alheia.

A cultura dessa necrópole está fincada nos rincões do Parnasianismo, onde reinam solenes Olavo Bilac e Rui Barbosa, com suas formas fixas patéticas e suas retóricas de bodega nobre. Sua concepção de cultura ativa é a concepção arcaica e achatada dos museus-velórios. Seus atos heróicos foram embalsamados no sorumbático período imperial. Suas referências de dinamismo estão enquadradas em pergaminhos cartográficos, da época do descobrimento. Seus livros são empoeirados e suas músicas foram preservadas em pianolas francesas, com todo o respeito à Inglaterra, para que não se crie aqui um pastelão melodramático, com a corte portuguesa como anfitriã bufona. Mas todos são de boas famílias, com tradição e credo confirmados.

Subindo pela âncora imensa em sua capacidade de estagnação, não como ratos excluídos desse esquematismo, fadado às bordas, mas sim como um rebelde em progressão invasora, o viajante se depara com o Crato que flutua, vivo, mas dormente em sua dolência induzida. Aqui a cultura é plural, embora imberbe, pois existe uma força provinda da manutenção, que impede vôos mais altos, apenas flutuações. Aqui a economia é furtiva, aos poucos a manutenção está perdendo as forças e está sendo implodida, mas o comércio, em alguns pontos, ainda fecha para o almoço e o que vem de fora tem mais valor, pois é assim desde o princípio, a cidade mórbida nunca produziu nada, uma vez que a renda é pública e o vilipêndio é um ato de esperteza. O Crato que flutua é universitário, mas não é pesquisador e nem cientista, é professor, que é chamado de tio, mesmo sendo doutor. É advogado, que é chamado de doutor, mesmo sem encontrar respaldo legal para isso. É médico, que é chamado de doutor, mesmo sem ter nem mestrado.

O Crato que flutua vive no cartão de crédito e no cheque especial, mesmo sendo tido como abastado. Mas é nessa cidade que existem aqueles sem tradição, sem propriedade e sem família, mas que vivem honestamente, que trabalham, que estudam, que pensam em mudar o futuro, que querem deixar as suas marcas, mesmo sendo confundidos com ladrões, com descuidistas, com estelionatários. São grandes homens e grandes mulheres apequenadas pelo peso aniquilador da tradição, que não reconhece seus filhos bastardos. O Crato que flutua tem grandes escritores que não são lidos, tem grandes compositores que não vendem discos, tem grandes atores e diretores que não são assistidos, tem grandes artistas que não são reconhecidos. É esse Crato que é famoso no mundo inteiro pela sua cultura popular e pela riqueza natural de suas encostas.

Ou seja, o Crato que se vê, com uma grande âncora pendurada no pescoço, vive de aparências, pois o Crato essencial suga todas as forças, para poder manter viva a tradição. Já o Crato dos não-nascidos, aquela que vive de reflexos, é uma grande piada. Ela é a projeção das frustrações incontidas do Crato essencial, que imagina ser uma cidade poderosa, incólume, impávida, heróica, vitoriosa, nobre e diletante. É a utopia filosófica do que é sem jamais ter sido. É um grande jardim em que os pavões jogam xadrez e as ninfas bufam essências delicadas. O viajante que desce a serra e vislumbra a cidade que flutua, jamais reconhece de imediato os seus desdobramentos. Só se beber da sua água misteriosa.


Labiata
A permanência de Lenine

Todo o espaço conquistado pelo compositor pernambucano, Lenine, está confirmado com o lançamento do seu novo disco, “Labiata”. Está confirmado com estilo, com elegância, com a apologia certeira de que o menos é muito mais e de que nada vale o virtuosismo se a criatividade e a originalidade não são suas guias. “Labiata” não é coisa que se finda, é coisa que se ilumina lentamente, ao sabor do devaneio, com ou sem trocadilhos.

Diz Lenine que o nome é de uma orquídea, em entrevista para Anderson Dezan, do site de notícias Ultimosegundo, ele afirma: “Três coisas me impressionam neste tipo de orquídea. Em primeiro lugar, a beleza da flor, sua exuberância. Depois, a diversidade da ocorrência dela. São mais de 40 mil espécies espalhadas pelo mundo e é possível encontrá-la no meio do deserto da Austrália, como no Tibete. Em terceiro lugar, a resistência. Ela tem essa capacidade de ser uma flor delicada e robusta. Esses três significantes permeiam o que é a música popular brasileira: a beleza, a diversidade e a resistência”.

“Labiata” é o oitavo disco de Lenine e o primeiro de estúdio, depois de dois discos ao vivo: MTV acústico e InCité; e de uma trilha para balé Breu, encomendada pelo Grupo Corpo. Duas peculiaridades acompanham esse novo trabalho, o lançamento simultâneo em vinil e a composição integral das músicas feita em estúdio, em pleno período de gravação. Além disso, vale ressaltar a produção requintadamente equilibrada de Jr. Tolstoi e a manutenção da banda base do último disco, com o caririense Pantico, na bateria e Jr. Tolstoi, nas guitarras, efeitos e intervenções; mais o baixo de Guila.

O disco tem as participações super especiais do Quinteto da Paraíba; de Pedro Luís e A Parede; Arnaldo Antunes, em uma expressão sonora e parcerias; Carlos Muñez; e China. Além disso, os três filhos de Lenine fazem vocais na faixa que fecha o disco, “Continuação”, uma das duas músicas de autoria total de Lenine, a outra música é “Martelo Bigorna”, que abre o disco. As outras composições, todas inéditas, Lenine divide com velhos parceiros, como Lula Queiroga, Bráulio Tavares, Dudu Falcão e Paulo César Pinheiro. Dentre essas parcerias existe uma póstuma, com Chico Science, “Samba e Leveza”, dedicada a Goretti, irmã de Chico, que viabilizou a parceria.

O estilo é o mesmo, harmonias dissonantes e levada sincopada, com melodias simples em cima de letras espertas, distantes dos imediatismos de mercado que empesteiam a crise institucionalizada da música popular brasileira. Os traços rockeiros de Jr. Tolstoi permanecem em sua pegada visceral e extremamente contemporânea. Aliás, Jr. Tolstoi é o sideman que qualquer cantor ativo e renovado precisa. Ele é senhor de sua parafernália de efeitos e sabe como poucos guitarristas da nova geração, fazer uma cama de texturas para que a base flua, com peso e delicadeza ao mesmo tempo. O trabalho desse guitarrista esperto, com pedal whammi, na faixa “O céu é muito”, parceria com Arnaldo Antunes, é eficiente, técnico e criativo.

Em seu trabalho de produção, Tolstoi deu a medida exata ao violão de Lenine e fez com que o cantor pernambucano também tocasse guitarra, com timbres limpos descolados. Mesmo nas faixas mais acústicas, que tiram o sono de qualquer produtor, Tolstoi manda bem nas captações e mixagens. As levadas funk das composições de Lenine, também foram bem tratadas, com a cozinha recebendo o devido destaque. Ao longo do disco, Tolstoi utiliza-se de filtros diversos, delays, compressores e reverbs bem dosados, sem a crueza patética de alguns discos indies e sem a plastificação de magazine de alguns discos atuais da MPB.

Os destaque ficam por conta das faixas “Martelo Bigorna”; “A Mancha”, com excelente letra de Lula Queiroga; “O céu é muito”, “É fogo”, tremenda levada; “Ciranda praieira”, extremamente climática, com intervenções, ruídos e efeitos de whammi na guitarra de Jr. Tolstoi; e a excelente “Excesso exceto” , o casamento perfeito entre o peso e a leveza, uma das poucas letras em que Arnaldo Antunes se livra do marasmo eterno do seu eterno nominalismo. Esse é um disco raro em meio a tanta porcaria lançada no mercado, visando as vendas de fim de ano.

O dioptro

Existe um terreno baldio
Nos confins do destino
Onde os pórticos esfarelam
E os arrimos atrofiam

Só alguns peregrinos
Conseguem encontrar lá
Mapas desidratados e
Cajados evolvidos de válvulas

Não há lá cognição
Mais pesada que o ar
É preciso então evaporar
Da alma desejos e dejetos

Eponina esteve lá e lá
Desenvolveu a sublime arte
De extrair as sombras que
Torturam a luz dos candeeiros

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008


As cidades Invisíveis – Ítalo Calvino
A arquitetura da linguagem

Se você está em busca de novos ares e pretende reformular o seu manual de sobrevivência no imensurável entulho de informações descartáveis que bombardeiam sua vida cotidianamente, o livro “Cidades Invisíveis”, do escritor italiano Ítalo Calvino, é uma das saídas mais honrosas que se tem notícia nos infindáveis subúrbios decadentes das artes contemporâneas.

Calvino morreu no dia 19 de setembro de 1985, na cidade de Siena, na Itália, aos 61 anos, de hemorragia cerebral. Apesar de falecido precocemente, o legado artístico desse que é um dos maiores intelectuais do nosso tempo, está mais vivo do que nunca, está próspero em seu caminhar para a eternidade. O descomunal da obra desse humanista italiano não está no tamanho, mas na inventividade, na arte indelével de manipular os signos lingüísticos e perscrutar o inusitado dentro das perspectivas existenciais humanas.

Calvino começa a sua trajetória literária dentro do neo-realismo, ainda sob influência de dois dos maiores escritores italianos dessa tendência, Cesare Pavese e Elio Vittotini, bem como tendo como fluxo literário as suas experiências como combatente na Segunda Guerra Mundial, quando integrou a Resistência Italiana, contra o fascismo. Ao longo da sua existência, e já como um sofisticado discípulo de Jorge Luís Borges, Calvino mudará radicalmente a sua estética literária, mas jamais perderá a História como a sua principal referência, seja a História próxima ou distante. É dela que ele extrairá os seus substratos existenciais, imaginários, mitológicos, simbólicos e fantásticos.

Ítalo Calvino é daquela linhagem de escritores que considera a linguagem como um meio e não como um fim. Nada em seu texto é bastardo. Nada em seu texto é compromissado com a uniformidade, da mesma forma que em seu discurso nada é casual. Ele é um autor com ramificações estilísticas dentro dos conceitos do realismo-fantástico, do realismo-maravilhoso, do realismo-mágico, do surrealismo e do historicismo livre das narrativas contemporâneas, em que a simbiose entre história e ficção acaba gerando o fragmentário, o descontínuo e o impávido estranhamento da desconstrução narrativa.

O livro “As Cidades Invisíveis” tem tudo isso e mais ainda o encantamento próprio da oralidade medieval. Não é romance. Não é conto. Não é crônica e nem poesia, é um entrelaçamento narrativo, sem limites de nenhuma espécie. É aquilo que Genette conceitua como hipertextualidade, um eterno revolver de textos em um único e interminável texto. Inevitavelmente paira sobre “As Cidades Invisíveis”, bem como outras obras de Calvino, como em “Se um viajante numa noite de inverno “e “O castelo dos destinos cruzados”, a marca inconfundível deMil e Uma Noites “, de Sharazade.

Tendo como fragmento de personagens Kublai Khan e Marco Polo, Calvino arquiteta o seu discurso tendo como argumento as descrições de várias cidades feitas por Polo a Khan. O livro tem como tema se divisões: As cidades e a memória; as cidades e o desejo; as cidades e os símbolos; as cidades delgadas; as cidades e as trocas; as cidades e os olhos; as cidades e o nome; as cidades e os mortos; as cidades e o céu; as cidades contínuas; e finalmente, as cidades ocultas. Cada cidade tema tem cinco descrições, que por suas vezes são entrecortadas com diálogos etéreos e descontínuos entre Polo e Khan.

Parece tudo muito justo e muito planejado. No entanto, o que brota dessa moldura não tem nenhuma ligação com o estático, o leitor mergulha de forma ilimitada em um universo filosófico de existências, de vidas, de experiências, de objetos, de utensílios, de víveres, de afetos, de memórias, de tensões, de alusões, desilusões e projeções supremas para a libertação do espírito e do corpo, jamais visto na literatura, não da forma proposta por Calvino e sua mágica com as palavras. Eis o reino da transmutação. O símbolo tanto controla como descontrola qualquer enunciado.

Verdadeiramente o viajante italiano foi contratado por 17 anos pelo grande imperador mongol Kublai Khan, como embaixador do seu império. Marco Polo e sua trupe, a serviço do grande Khan,fundador da dinastia Yuan, na China, percorreram a Tartária, a China e a Indochina, fazendo então relatos minuciosos de todas as suas incursões. São esses relatos que entraram para a história. Calvino aproveita essa deixa da história e cria uma das mais instigantes obras de ficção do nosso tempo. Simbolicamente todas as cidades descritas por Polo têm nomes de mulheres. Cada uma com sua peculiaridade, cada uma com seu segredo, cada uma com seu desdobramento surreal.

As cidades de Ítalo Calvino são completamente diferentes das nossas, elas contém o imponderável e as possibilidades impossíveis da existência e da convivência. Laudômia, por exemplo, são três cidades em uma, uma dos não-nascidos, uma dos mortos e outra dos vivos. Em Eufêmia se troca de memória em todos os solstícios e equinócios. Em Melânia, toda vez que o viajante vai à praça ele se depara com fragmentos de diálogos, que mudam de acordo com as visitas. Em Leônia, quanto mais a cidade expele coisas, mais ela acumula coisas. Eutrópia não é apenas uma cidade, mas todas, sendo que apenas uma é habitada, as restantes são desertas. Já em Bersabéia existe a crença de uma outra Bersabéia suspensa no céu, onde gravitam os sentimentos e as virtudes mais elevadas...

Para qualquer viajante estelar das letras, essa é uma parada obrigatória. Aqui você renova os ânimos, recarrega o que tem que ser carregado e recolhe os mapas secretos das mais importantes trilhas do mundo, do submundo e do supramundo. Seja bem vindo e não dê satisfações de onde você vem e para onde você vai, o que importa é viajar.

A ânfora

O pior dos desertos
É aquele que tem um outro
Deserto dentro dele

Um apaga os rastros
Esculpidos no outro com um
Vento que evoca invólucros

Assim o término de um
Labirinto é o início de outro
Que tende para o infinito

O pior desses grãos arremessados
É que eles lapidam como lixas
Que dissecam os sentidos

Diante dessa imensidão
Que se move para o devaneio
É impossível não lembrar Estamira

Que não salivava
Que tinha o estranho dom
De embalsamar palavras

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O Elmo

Conta-se com o
Barulho e a infidelidade
Das apostas feitas

Conta-se com o
Constante revolver
Dos prognósticos

Daí a sisudez ao incluir
Ou excluir tudo aquilo
Que se invade ou se evade

Mas não há lógica
Em desbastar o sumo
E empilhar os resquícios

Assim se debulhavam
Por entre a velha prótese
As palavras de Adalgisa

Já quaravam no anil
As palavras antes de ela ser
Rezadeira por dádiva

Quando ela ainda flutuava
Na força volátil do orvalho
Bem antes de existir

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O astrolábio

Desta vez
Eu conheci Zulmira
Que se debatia em convulsões
No chão da cozinha

Depois os cabelos
Amornados pelo fulgor
Depois o olhar sereno
Pousado sobre os subjetivos

Desta vez
O retorno se dera
De solstícios e equinócios
Deveras impronunciáveis

Havia percebido que um
Cemitério de falas mortas
Não é o silêncio ainda
O que muda não é a memória

terça-feira, 9 de dezembro de 2008


A Viagem do Elefante – José Saramago
Um mestre conta uma história

Depois de tantos anos com uma idéia na cabeça, desde 1999, Saramago entrega ao público uma viagem inusitada, cheia de ironias vigorosas, nada vigaristas, e sempre atravessando seus alvos com travessões travessos, questionadores da mormência histórica, obstinada em empilhar fuligens racionais por sobre os devaneios reais dos seres humanos em pleno absurdo da existência.

A idéia dessa narrativa surgiu quando ele almoçou em um restaurante de Salzburgo, na Áustria, chamado O Elefante, a convite de Gilda Lopes Encarnação. Neste restaurante algumas pequenas esculturas em madeira chamaram a atenção de Saramago, que logo ficou sabendo que eram representações de edifícios, que demarcavam a longa viagem de um elefante, de Lisboa a Viena. Nascia ali um conto singelo.

A narrativa se baseia na manobra diplomática envolvendo o elefante Salomão, que no século XVI, mais precisamente em 1551, cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, dado como um presente, embalado como um golpe baixo e conduzido como uma esfinge. Dom João III, rei de Portugal e Algarves, casado com dona Catarina d’Áustria, resolveu oferecer ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos V, como presente de casamento, o elefante, muito menos por se tratar de uma imensidão, do que pelo tamanho maior da desculpa em não recebê-lo.

O livro levou cerca de dez anos para ganhar forma e foi escrito durante o período em que o escritor maior da língua portuguesa estava acometido por uma estranha e impertinente doença respiratória. O próprio autor achou que não escaparia e a narrativa ficaria inacabada. Mas, para o bem geral do povo culto, Deus disse que ele ficaria mais. Assim podemos conviver com mais esse filho da família Saramago, dona de uma linhagem astuta, elegante, provedora de signos e ironias, para além das habilidades técnicas da escrita, já nos domínios das esferas infinitas.

De acordo com Pilar del Río, mulher de Saramago, o autor entende essa narrativa como um conto e não como um romance. De fato, essa é uma deliciosa história contada ao pé da fogueira em um quintal vizinho. No entanto, nem de longe essa é uma obra pequena, claro que sem o fôlego de um O Evangelho Segundo Jesus Cristo, mas com o encantamento de Uma Jangada de Pedra. A técnica é de um exímio esgrimista em duelo indefinido com as palavras, com a planta dos pés postada no fio da navalha da criação.

A estética é nominal, leva a assinatura da contemporaneidade da obra de José Saramago, singular e plural, dialética, incontida em suas junções e disjunções, em suas diacronias e sincronias. A fusão entre história e ficção é uma das grandes janelas que arejam os ares da cansada literatura universal. Saramago é um dos seus mestres. É um duende que extrai de datas,decretos, de formulários e de protocolos, o sangue humano em sua mais sofisticada inventiva existencial.

Saramago fundamenta a história de Salomão, o elefante presente, e de seu conarca, o indiano Subhro, na mais pura metalinguagem, em que um narrador, que oscila em ser às vezes sim e às vezes não, observador, destila uma ironia fina sobre o ato da poética, sobre os valores da significação e sobre as intenções da escrita. O humanismo do teatro universal de Saramago está em todas as linhas, redimensionando os seres vivos, os mortos e os ressuscitados. As entranhas da convivência humana são revisitadas mais uma vez, como sempre, em tom quase que anárquico.

A forma como Saramago trata as formas do discurso continua a mesma. As falas são anunciadas apenas por maiúsculas, após vírgulas ou pontos. Os parágrafos são imensos, com imensas frases entrecortadas por imensas vírgulas. Agora as maiúsculas só aparecem para fundarem uma nova frase ou indicar uma fala, e não mais do que isso, todas as necessidades do uso delas está descartada, exceto as citadas. Existe um quê de descontinuidade e fragmentação no discurso poético de Saramago. Ele constrói para desconstruir, convidando o leitor para participar de seus estranhamentos específicos. Não podia faltar um toque de absurdo e de fantástico, senão não seria uma saga de Saramago.

Da mesma forma não poderia ficar de fora a abordagem especial que ele faz da estrutura caricatural da família real portuguesa, com seu ar infinitamente beócio, com suas digitais decadentes e seus rastros indolentes fincados no molde absconso da história. A burocracia patética do Estado português também recebe as suas devidas considerações irônicas. A igreja também é referenciada em seus mecanismos de burlas e dominações nefastas.

Entre tantos protagonismos da saga da comitiva, o episódio em que o elefante Salomão é obrigado a forjar um milagre, ao se ajoelhar frente à basílica de Pádua e frente a inúmeras autoridades do clero, para combater a expansão do luteranismo, é um caso à parte. É tão hilário quanto contundente o leitor se deparar com o livre comércio dos pelos do elefante como relíquias.

Assim conta o narrador, com ironia corrosiva, “Solimão (o elefante muda de nome ao chegar às mãos do arquiduque) recebeu em troca uma generosa aspersão de água benta que chegou a salpicar o conarca lá em cima, enquanto a assistência unanimemente, caía de joelhos e a múmia do glorioso santo Antônio estremecia de gozo no túmulo.” Esse é apenas um pedacinho dessa deliciosa jornada. Descubra você mesmo ela por inteira. Ela é encantada, como tudo que sai da imaginação desse fenômeno chamado José Saramago.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Dos hemisférios

Vou confessar
confesso que o farei
mas sem muita convicção
vou abrir o coração
talvez a mente não
pois ela mente
é cheia de demências cotidianas
gosta de elaborar fronteiras
e me meter dentro de extensões
que mais parecem caixas
dentro de outras caixas
sem consentimentos
apenas formadas por formulários
de alfândegas lotadas
de funcionários corruptos
assim tanto é que estive tão ausente
ocupado com minhas perdas
com braças e braças de terras ausentes
que já não fazem parte dos meus domínios
que me fazem sentir um retirante dentro de mim
que me fazem sentir que o meu sofá já não mais me pertence
como o velho computador que
sente ir embora as vogais
e vê o sistemático plano das consoantes
se entramelar entrementes
já o livro de Saramago
com a viagem do elefante Salomão
ainda me olha vislumbrado
já os beijos para os filhos
são imediatos como pés de patos
já os beijos para a amada eterna
resolveram estrelar um número novo nos trapézios
voam com os seus e os meus limites

Esse poema faz parte do livro inédito
"Manual de sobrevivência para astronautas"
e é dedicado a Carlos Rafael e Domingos Barroso


segunda-feira, 24 de novembro de 2008



The Stooges – 1969
A lisergia primal

Falar dos Stooges é falar do submundo, é procurar entender a contracultura, é perceber que a música não precisa necessariamente ser um fim, mas apenas um meio para expressar o sentimento da existência impura da contravenção, do aniquilamento imperdoável do tempo e do espaço.

Depois de tantos anos e tantos rótulos fornecidos pela merdologia crítica do mercado musical, fica fácil enquadrar a banda em uma estética qualquer, como proto-punk, por exemplo. Mas isso é porcaria, sem função nenhuma. Aliás, não ter função era uma das intenções da banda, que começou a subverter a ordem até na sua própria concepção estética: eles se achavam psicodélicos, antagônicos ao movimento de Los Angeles. Inicialmente eles se proclamaram The Psychedelic Stooges, algo parecido como Os panacas psicodélicos, em tradução livre.

Eles achavam que ser psicodélicos era construir seus próprios instrumentos, como Harry Partch, um obscuro e injustiçado compositor americano, que desenvolveu uma marginalizada estética baseada em escalas microtonais e atonais, fabricando seus próprios instrumentos para isso. É também de Harry Partch que vem boa parte da performance corporal de Iggy Pop no palco. Harry Partch fez uma junção de música, discurso e expressão corporal em várias de suas peças, entre elas a descomunal interpretação operística do poema “Sophocles’ Oedipus”, de Willians Butler Yeats.

Nos primórdios da banda a percussão era baseada em tonéis de metal vazios e outros apetrechos. Uma guitarra sem quase nenhuma técnica em volume estratosférico e um vocal desesperado, com Iggy Pop cantando suas apatias vestindo uma camisola de maternidade e empunhando uma tábua de lavar amplificada. Eles evoluíram, se é que se pode afirmar isso, para uma banda com formação comum e impressionaram um executivo da Electra, que havia viajado para Detroid com o intuito de contratar o MC5. O som não impressionou tanto, mas Iggy Pop cortando o próprio corpo com vidro e se lambuzando com pasta de amendoim no palco, enquanto berrava o seu tédio, sim.

Para registrar o primeiro disco, intitulado apenas “The Stooges”, a banda precisou completar o material, pois eles só tinham cinco músicas no repertório: 1969; No fun; I wanna be your dog; We will fall e Ann. A banda vivia de longas improvisações no palco. Boa parte delas está registrada em seus discos, com sessões históricas, repletas de álcool, drogas e experiências diversas. As músicas Real cool time; Not right e Litle doll foram compostas, então, em uma madrugada e tocadas pela primeira vez no estúdio. Uma boa parte de We will fall também foi acrescida no estúdio.

O disco teve a produção de ninguém mais do que John Cale, líder do Velvet Underground, que ainda tocou piano em I wanna be your dog e viola em We will fall. O som é cru, é visceral, é na cara, sem constrangimentos de nenhuma espécie. A maioria composta em três notas, suficientes para descabelar qualquer um que busque complexidade harmônica, como também suficientes para entusiasmar qualquer um que esteja cansado de hermetismos musicais e prolixidades discursivas.

1969 é sem nenhuma esperança. É uma espécie de shufle anarquista, abre o disco como um verdadeiro cartão de visitas de vendedor de aspirador de pó. A ironia fica por conta desse vendedor estar em um bairro pobre, sem grana e sem futuro. O wha da guitarra de Ron Asheton ficou marcado para sempre, esse é um dos hits mais Cult de todos os tempos. I wanna be your dog é um clássico, um hit natural, com uma seminal parede fuzzy de guitarra, além de uma percussão pernóstica, que lembra sons de natal. Iggy Pop não canta essa música, ele proclama. Imperdivelmente sujo, marginal, submundo.

We will fall é uma faixa bizarra e experimental. Tem o minimalismo apresentado muitas vezes nas músicas do Velvet. Depois de tanto tempo passado o clima soturno dessa faixa não envelheceu e é o que mais se aproxima de uma pegada psicodélica. No fun, a faixa seguinte, é deliciosamente marginal, um hino ao desperdício juvenil, retratando a falta de perspectiva americana. A bateria de Scott Asheton e o baixo de Deve Alexander recebem o auxílio de palmas, bem ao estilo roots. Essa faixa tem a autenticidade cretina que faltou aos Rolling Stones e a ironia satírica marginal que nunca esteve presente nos Beatles. Também não sei se era preciso.

Real Cool time, Ann, Not right e Litle doll fecham o disco com o estilo legítimo dos Stooges: com ironia e improvisações, com direito à lisergia em Ann e ao peso cru nas duas últimas músicas. Esse é um disco histórico, não por pertencer a um passado rico artisticamente, mas por ter feito história, na concepção maior do termo. A grande contribuição desse disco é justamente fundar a não estética, o não virtuosismo. Sobre ele pesa a atitude de uma geração que se viu ludibriada pelos ilusionistas do way of life americano. Ouvir esse disco depois de tanto tempo é muito gratificante, principalmente para aqueles que entendem o rock como um meio e não como um fim.

sábado, 22 de novembro de 2008

Dos Mistérios

Afetado o alfinete
Paira absoluto
Refletindo o que
Parece ser através
Do reflexo da redoma
Na sua propriedade
De estagnar o signo
Atravessando o plexo
Do aracnídeo morto
Parece reter o imprevisível
Que se revela sideral
Mas como Antífon
Que escreveu sobre a verdade
Desconhece a própria
Natureza que defende:
As águas não se repetem
Dos Elementos

Os elefantes não esquecem
As abelhas adoçam
O ferro chia
O rádio chia
A chuva de gafanhotos não molha
Os pássaros cantam
Os pitagóricos cantam
O fenômeno altera
Apesar da concreção
Apesar da solidão das portas
Mortas com as maçanetas nas mãos
Das Contentações

Por dois dias Assumpção ali
Sentada naquela pedra
Por dois dias dois séculos
Sobrecarregaram inteiros
Os seus dois ombros

De nada adianta
Renegar de forma alguma
O evadir-se de si
E vê que essa fome não
É nenhuma forasteira

Por dois dias Assumpção ali
E a pedra dentro dela
A expandir por dois séculos
A sua solidez sozinha
sem nenhuma conta paga

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Das Inquisições

Em um gesto sinistro
O Papa Sisto IV olhou-se no espelho
E não viu Deus em seu sorriso
Torquemada viu numa grande fogueira
E depositou ali o seu cajado
E em três velhos motores
Jogados em um deserto
Para quem a morte não tem segredo
Depositou o sopro gélido
De milhares de assassinatos
E eles ficaram ali quase soterrados
Sem ter para onde ir
Tiveram desde então
Pesadelos torpes com uma
Longa estrada e uma tempestade
De gasolina vinda do oriente

E eles foram descobertos
Por uma tribo nômade e recorrente
De achadores de cacimbas
Por trás dos montes tem um
Asfalto quente que leva
Em sete léguas bem tiradas
Ao templo erguido sobre as ruínas
Disse um daqueles seres tão tênues
Para um daqueles curiosos
Que colhia restos como relíquias
E veio um templário
E disse aqui é o pagamento
E veio um membro nobre do
Priorado de Sião e disse
Toda folha que seca
Se quebra em pedaços

E logo chegaram os cátaros
Das terras altas de Languedoc
E disseram eis o Homem com um
Vácuo entre seus dentes
E veio um jesuíta em aparição e disse
exigit sincerae devotionis affectus
para o que ficou em um silêncio
incapaz de mais guardar
e veio o fantasma decadente
de um rei ibérico com um tumor
na próstata e disse já não
posso mais mijar em seus tanques
e fazer mover essas polias
e essas engrenagens em torturas
mas foi uma rezadeira que disse
a verdadeira viagem é para dentro

sábado, 8 de novembro de 2008

Sétimo Céu

Naquele dia, aquele cara que chegou no prédio puxando a solidão por uma coleira, ficou finalmente conhecido. E reconhecido. A fama é o alimento dessa era. Eram nem duas horas da madrugada, ele e os travestis que fazem ponto na esquina, quase em baixo do prédio, fizeram a festa. Cada um a seu modo, como é o hábito dessa era. Vindo de um coronel reformado do exército, crente e temente a Deus, defensor da ordem e da disciplina, que criou os filhos à imagem e semelhança da justiça, foi surpresa geral. Delírio moral é referência dessa era, cheia de rótulos, produtos e leis de mercado. O sêmem ainda escorrendo vacilante põe em dúvida a tese de suicído, que parte da família defende. O cinto afivelado no pescoço com a ponta enrolada na mão esquerda cria mitos existenciais. A boneca inflável jogada ao lado parece insatisfeita e espantada, nunca vira aquilo, sua configuração é de moça recatada. Sessenta e três anos pesam, confiscam todo o ar do velório. A usinagem é a embreagem dessa era. Entre um cafezinho e outro, familiares e amigos do grupo de convivência da terceira idade preparam a versão oficial. De forma clandestina, que é a cara dessa era, falaram em bondage e hipoxifilia. Atribuíram aos travestis, que é gente que não conta, só espalha.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Das Bodegas

Áspera
a fragrância precária
ensaia sonora gargalhada
gorgulhos navegam orgulhosos
em um copo de cachaça
tudo é balcão, arre! Tudo é

uma chuva densa cai lá fora
não se vê muito pela janela
outrora caia ali o corpo de Barnabé
mil demônios o esperavam do lado de lá
há quem diga que de vez em quando ele se levanta
e se aproxima balançando nos bolsos
algumas pedras de gelo

é um ato falho as mãos
procurarem medir com os dedos
e as unhas o medo de um anão
diante da grande vadiagem
é melhor deixar que a carroça
carregue seus ossos sem permissão

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Dos Hemisférios

Por tantos anos
Eu bati naquelas portas
Por tantos anos
Ninguém fez ranger
Nenhuma dobradiça

Por tantos anos
Nenhum grunhido
Dissoluto ao meu redor
Nem por menor que seja
Nehuma fresta compelida

Não vou mais
Alimentar morcegos
Que meus intestinos
Me escutem e que minha
Bexiga seja pertinente

Agora vou cruzar o árido
E o campo dos suprimidos
Vou em busca do vale onde
Dizem que o hipotálamo
Tem um elmo cor de melro

Já de agora olha e vê
Sombreando a floresta
A chapada onde os cavalos
De Aquiles choram por Kaváfis
A morte prematura

Por tantos anos
Estarei lá pisoteando ranhuras
Por tantos anos
Hei de serpentear encostas
Em busca dos idos
Muros

Sem cuidado, sem respeito nem pesar,
Ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
Noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Konstantinos Kafávis – 1911
Tradução de José Paulo Paes
Afterglow

O ocaso é sempre comovente
Por mais pobre ou berrante que seja,
Porém mais comovente ainda
É o fulgor desesperado e final
Que enferruja a planície
Quando o último sol mergulhou.
É doloroso manter essa luz tensa e diversa,
Essa alucinação que impõe ao espaço
O medo unânime da sombra
E cessa de repente
Quando notamos sua falsidade,
Como cessam os sonhos
Quando sabemos que sonhamos

Jorge Luis Borges – 1923
Tradução de Josely Vianna Baptista
Dos Mistérios

Os arcanjos e arqueiros
Estão locados entre as pedras
Esperam sem asperezas o meio dia
Retirar suas tolhas de mesa

O terreiro é vasto
Mas os cães dominam o medo
Quando não eles adubam
A terra com uréia desguarnecida

Os ponteiros do relógio
Roçam o tempo com memórias
Não ficamos mais jovens agora
Perdemos os fósforos no escuro

Quem se jogar da janela agora
Vai encontrar espantada
Uma fila de ônibus que espera
Estão todos calados agora

Os cães amofinam
Regojitam o ar das narinas
Sinto o espírito de Francisca
Que volta sem sorrir

Ao que digo sentado sobre
Os calos e os calcanhares
Quem vem lá? Quem vem lá?
É de paz? É de paz?

domingo, 2 de novembro de 2008





Konstantinos Kaváfis
Poemas

Muito se tem refletido sobre a arte praticada nos anos iniciais do século XX, não só pela necessidade natural de uma revisão histórica, mas também pela imensa vacuidade artística da contemporaneidade, em que salvo algumas manifestações artísticas, o que se vê é pura diluição degradada. Dentro desse ponto de vista que nos oferece espelhos para uma evolução urgente, a partir do que é significativo no passado, está a seleção de poemas do grego Kaváfis, com tradução, notas e estudo crítico de José Paulo Paes, relançada pela editora José Olympio, na série Sabor Literário.

Konstantinos Kaváfis, no Brasil, país de pouca leitura e vasta ignorância, não passa de um poeta obscuro, restrito apenas aos iniciados em poesia, a esparsos grupos de universitários ou aos guetos homossexuais, em que alguma louca intelectual goste de exibir em seus lábios trêmulos e afetados, a lascívia latente do poeta se reportando ao seu amor maldito e efêmero, nascido nos cafés soturnos de Alexandria. Nessa seleção, de pouco mais de 70 poemas, é possível perceber, entre outras coisas, que a poesia de Kaváfis tem bem mais facetas do que apenas a sua ousada manifestação homossexual em versos.

Em sua nota introdutória José Paulo Paes demonstra com propriedade as raízes simbolistas e penumbristas do maldito poeta grego. É muito interessante ler esse ensaio literário, uma vez que é possível dimensionar a projeção de Kaváfis em seu tempo e entender como ele foi afetado pelo pensamento corrente. José Paulo Paes faz uma série de analogias entre o estilo libertário e libertino de Kaváfis, com vários estilos de outros poetas contemporâneos do grego.Vale ressaltar das personificações de Fernando Pessoa e Ezra Pound, em relação às personificações criadas pelo poeta Kaváfis.

Além da simbologia, do uso da linguagem e das peculiaridades do metro, da rima e da estrofação, recursos utilizados pelo poeta, são destaques também a textura sutil da crítica social, do existencialismo e a ironia histórica utilizada em livres interpretações. Kaváfis foi contemporâneo de grandes poetas, entre eles, além dos citados, estão Jorge Luis Borges, Yeats, Unamuno, Max Jacob, Guillaume Apollinaire, Paul Valery, Rilke e Manuel Bandeira. Apesar dessa efervescência de estéticas e vanguardas, o poeta resguardou o seu estilo próprio, como fazem aqueles que possuem vozes singulares.

Também é muito interessante perceber como José Paulo Paes se esforça em valorizar os poemas menores de Kaváfis, através do estudo da sintaxe e da escolha lexical, recursos que têm pouquíssimos poderes de conceber uma grande literatura. Mas, de fato, são poucas as sobras contidas nessa seleção. Não por uma questão de estigma ou qualquer outro babado, os poemas menores fazem parte do cânone de temática homossexual. Alguns por serem confessionais demais, em que importam mais o desabafo e não a manipulação da linguagem, e outros por serem efêmeros, sem sustentação diante do tempo.

O legado todo de Kaváfis é de pouca produção, apenas 154 poemas. Mas a importância desse poeta não está na quantidade. Através de uma visão bem particular de compor versos, vários poemas seus entraram na história literária pela porta da frente, com a competência daqueles que são agraciados pela sensibilidade e pelo intelecto. Poemas como “Ítaca”, “À espera dos Bárbaros”, “O Deus Abandona Antônio”, “Idos de Março”, “Termópilas”, “Num Demo da Ásia Menor”, “Teódoto”, “Flores Brancas e Belas como Tão Bem Convinha”, “Ano 200 A.C.” e o surpreendente “Muros”, revigoram o espírito e aprimoram a perplexidade.

Independente de seleções por afinidade ou outro aspecto qualquer, esse é um livro que deve ser sorvido e servido aos poucos. Use-o contra o tédio; para amenizar a chatice de ser o intelectual de plantão; ou para neutralizar a burrice reinante, que tanto nos esforçamos para não fazermos parte, mas basta dar uma olhada ao redor, que é fácil de flagrar caninos errantes.
Dos armistícios

Logo ali
Por trás da garrafa de café
Seca e em pura solidão
Havia uma tensão renomada

Olhos untados na gordura dos bordéis
Passaram-se três dias
Os muros procurando o céu
E tudo o que é pertencido permanece
Mais triste ainda

A cidade tenta se proteger
Dos próprios rastros
Rasteja e se confina em retalhos
Diante do grande portão
Está e esteja sempre com um
Palmo de língua para fora
Salgando os salmos com o suor
Da leitura dos seus saldos

Logo ali
Nas estrias da vigília
Acima dos fracos
E abaixo dos inocentes
Amauri Caolho vê com a sua
Única possibilidade um bando de ratos
Cruzando o bosque de sucatas
Estão indo embora sob nenhuma mira
Já é tarde

Não levaram as pulgas
Deixaram todas para nós
Disse cuspindo em distância
Depois de mascar o próprio siso
Dos Dísticos

Se existe uma palavra
Que não caduca essa é astúcia
Que se arma de finas armaduras
E sórdidas urdiduras
E em veias e músculos próprios
Puxa com mãos próprias
Os próprios cabelos
Do Barão de Munchausen
Diante da areia movediça

Mas, Anacleto de Bertinha,
Eis o perplexo: o universo
Tem lá os seus rigores em suas
Primeiras e últimas moradas
No imenso pátio de um segundo
Ele pode definir tudo
Como o aroma do amor
Nesse café forte que brota
Das entranhas de Gertrudes
A cidade travestida

Katiúscia Priscila, Andressa Kelly, Tabata Regina, Amapola Toda Boa, Berta Lorena, Aline Grandona, Vera Virada, Veruska Bom Bom, são todos nomes de guerra, que trafegam em batalhas noturnas, nas transversais da cidade mais religiosa do Cariri. Em suas rondas noturnas, os travestis conseguiram dar a Juazeiro do Norte um toque de complexidade na maquiagem dessa cidade cheia de complexos.

Quando você se depara com aqueles pequenos grupos de homens transmutados, vestidos com a sensualidade do caricato, expostos à venda - ou troca -, estrategicamente espalhados em lotes demarcados nas esquinas do centro da cidade, você pode ver tudo, menos pouca vergonha, pois esse é um fenômeno que trata da menor escolha. Ali é a própria cidade em toda sua grande extensão. Ali é o processo dialético da cidade em sua urbanidade, em que ela exclui a sua cria bastarda, para depois incluí-la como expurgo em sua lista de traumas indesejados.

Não adianta soltar os cachorros. Não adianta organizar os exércitos da salvação em cruzadas histéricas da moral e cívica, em nome da honra do bem comum. Muito menos é pertinente apontar o dedo para a crucificação de um culpado, para execração pública através do maniqueísmo venal da provinciana mídia caririense. Pois entre um chupão de língua de um travesti e seu cliente desconfiado e a venda de uma falsa garrafa de água mineral benta em tempos de romaria, não existe distância nenhuma. Ambos são comércios. Ambos são frutos da permissividade, a mesma permissividade velada que existe no axioma maior dessa cidade: “aqui se ganha a vida”.

Os travestis existem em todas as grandes metrópoles. Até parece que eles fazem parte do processo de verticalização da cidade, como símbolos fálicos ao avesso, exibindo em sua desafiadora complexidade o desvio mutante da negação da masculinidade e alegoria infértil da afirmação feminina. Os apartamentos, os bares, a rispidez do asfalto, a astúcia do comércio, a tensão do tráfego e o dinheiro no bolso a qualquer preço, são coisas de macho.
Veruska Bom Bom, oferecendo seus silicones sem nenhum pudor, na esquina da rua São Pedro com a rua Do Seminário, é coisa de macho.

Essa cidade, como quase todas, é fatalmente feita para machos, machos dominantes. Da mesma forma assim são os bordéis com suas clientelas embriagadas; a música tosca e degradante que toca nos paredões de sons de 25 mil reais; a cachaça servida com buchada; o ramo da pirataria; a indústria da agiotagem; o futebol na tela clandestina; o amor bandido; o prazer proibido; a pistolagem; o superfaturamento; a sonegação de impostos; a cegueira da justiça; a soberba e a prepotência. São todas coisas de macho e são todas originadas na permissividade. São fatos e fatores dos mecanismos das relações sociais. São pedaços de sucatas que fazem parte do quebra-cabeça dos escombros da humanidade.

Não adianta prender Katiúscia Priscila e ter que soltar Berta Lorena. Não adianta atropelar Tabata Regina com um Honda Civic e ter que amparar pelo Sistema Único de Saúde a invalidez de Amapola Toda Boa. E nem de forma nenhuma amaldiçoar o travesti da esquina mais próxima tendo em casa filhas pródigas, parideiras, prestes a constituírem famílias ante um futuro sempre ameaçador. É preciso conviver sem permissividade. É preciso assistir, não como platéia de uma peça trágica, mas com um olhar de intervenção social.

É necessário que a sociedade, em parceria com os poderes públicos e as instituições não governamentais, atuem na transformação da cidade, antes que ela se torne definitivamente em um monstrengo urbano, sem saídas plausíveis para suas anomalias. O que está em jogo aqui não é a opção sexual em si, mas a prostituição em alto grau de agressividade, seja ela de qual opção sexual for. Para uma abordagem sensata do fenômeno, através do sistema de parcerias são necessários projetos sociais legítimos, que possam retirar essa venalidade sexual das ruas.

No entanto, o que se evidencia aqui são projetos sociais de fato e de direito, elaborados sob o signo da idoneidade e não determinadas parcerias entre organizações não governamentais e o poder público, em que o mesmo caráter de prostituição dos travestis impera. Esses tipos sociológicos são vistos largamente, rondando as instituições públicas com suas maquiagens pesadas, seus trejeitos exagerados, suas agendas lotadas de contatos descolados, e suas bolsas rodadas, prontas para repartirem as comissões.

De fato, a cidade em sua totalidade, não se traveste. Ela é autêntica em sua pluraridade. As suas transversais são próprias. Os olhares que recaem sobre ela é que são viciados em modelos prontos e bem embalados, vendidos sob a ética do comércio de quinquilharias dos seus pequenos e grandes mercados. A recusa não é própria da cidade. Isso é coisa de macho, que exorcisa o pecado segurando o saco, para que a inteligência não vaze e forme uma poça de lama, transformada em balneário pelos seus piolhos.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dos Repúdios

A esgrima da rejeição
É uma cárie no canino crescido
É por lá que passam as solas gastas
E o refluxo da solidão

Toda noite é assim
Quando o ar fica murmurando muros
E as vacas pisoteiam vagas para
Nascerem bezerros seus

Existe na multidão
Um ar de repúdio ao veja só
Nem que seja por um segundo
A farinha nega os farelos

E é justamente nessa hora
Que chega sempre Ramiro Flores
Com seus dentes de ouro
E sua úlcera que incinera a alma

domingo, 19 de outubro de 2008

A favela das velas

Juazeiro é uma cidade muito engraçada, cheia de piadas. Muitos não entendem seu senso de humor trágico. Definitivamente a culpa não é dela. Ela até que se esforça para ser entendida através de manifestações óbvias. Mas, se ninguém ri de suas anedotas, ela ri da gente, com sua gargalhada sonora e sua boca socialmente banguela. A favela que cresce nos arredores da Matriz de Nossa Senhora das Dores é uma de suas piadas sujas.

Quando uma quenga de pouco mais de vinte anos, usando mini-saia apertada, quebrando o buxo na canela, exibe a sua tabela de preços através do vermelho néon do seu baton da avon, encostada numa estaca que segura o barraco, ouvindo Aviões do Forró num micro-som fanhoso, a cidade também exibe ali suas malícias e seus malefícios, frutos das oportunidades que ela oferta e dos oportunistas que a infestam.

São as duas faces de uma mesma moeda. Dinheiro esse que corre léguas tiranas dentro e fora dos muros da cidade, às vezes demagogicamente ostentado, às vezes sorrateiramente cultivado. Assim cresce a Juazeiro do Norte dos contrastes. Sendo que vez por outra o passado e o presente se encontram nas esquinas, nos porões e nas salas mais requintadas. E é aí que se percebe facilmente o cinismo patético dessa cidade. Padre Cícero veio para acabar com a promiscuidade do entreposto Tabuleiro Grande. O tempo passou, Juazeiro do Norte saiu do Tabuleiro, mas o Tabuleiro não saiu do Juazeiro do Norte.

Se nesse mesmo espaço geográfico, de um lado existe o mais simbólico templo de devoção e fé dos romeiros, em que entre uma oração e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma do dízimo voluntário, do outro lado existe o templo da promiscuidade, erguido com o poder dos interesses escusos, com pregos, papelão, restos de madeira, palhas, flandres e descasos e descasos, em que entre uma cachaça e outra, esmolas generosas são ofertadas em forma de arame farpado para curral. É nesse espaço geográfico em que a multidão, em tempos de romaria, se divide e se multiplica.

De acordo com o filósofo alemão Walter Benjamim, “na multidão o que está abaixo do homem entra em relação com o que impera acima dele e é essa promiscuidade que engloba todas as outras”. Isso é a pura verdade. Vale ressaltar, que a multidão, em sua comédia humana, enquanto massa, se apresenta invisível socialmente, em torno da coisa comum que aquele aglomerado expressa, estão ocultos os interesses privados, quase impossíveis de serem detectados de imediato. No entanto, sob um olhar mais atento, os mecanismos dessa risada irônica da cidade, que ridiculariza qualquer convívio entre o sagrado e o profano, vêm à tona.

É difícil de se acreditar em falta de visão política, que não vislumbra uma cidade turística, além de romeira. Também é difícil de acreditar na máxima de que não se pode solucionar o problema da noite para o dia, uma vez que todos os outros santuários de grande fluxo turístico conseguiram, sendo Aparecida o maior exemplo disso. Entender a tolerância para a continuidade dessa favela como uma manobra do espírito humanitário, em que todos têm o direito de sobreviver de alguma forma, é tão infantil quanto acreditar na fada dos dentes. É claro que a cidade ri de toda essa inocência, através dos trejeitos dos seus travestis, com seus sexos e jóias falsas.

É bem mais fácil de acreditar em um jogo de interesses menores, do que na “imposição de uma mazela social sem fim, culpa da desigualdade”. A permissividade da prostituição, da falta de fiscalização sanitária e da ocupação indevida do espaço, tem uma causa óbvia, e que foge das limitações da administração pública. Esse curral não é só mantido pela troca de favores e pela compra de votos. Existe aí uma troca de interesses públicos e privados, que a cidade esconde debaixo do braço, para alguns, para outros, debaixo do sovaco. Tudo, na realidade, é uma questão de postura, conta piada quem pode e ri quem deve.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Dos Conceitos

Do nada a fuligem
Torna-se rigorosa, cheia
De marcas indeléveis
Nada afável, nada às favas

Capaz de empalar o mundo
De uma só vez, ela se mostra
Um tanto taciturna, sem afetos
E sem fetos, apenas com
Seus fatos à mostra, trágicos

Quando perguntada
Pelo seu último segredo
Ela deu de ombros, afetada
Em alfinetadas, respondeu
Em perpendiculares:
Fluuuu, fluuuu, vruum, vruum

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Dos hemisférios

Porfírio de Jesus
Tem os cadáveres de
Três lâmpadas amareladas
Incrustados nas costelas,
Tem como contrapeso
Três desejos despejados
Sem nenhuma reserva.
Ele sempre sobe a ladeira
Do Seminário contando
As pedras e as perdas,
Mas aí já é outra história.


Johnny Winter - Captured Live!
para a eternidade

Em uma lendária entrevista para a revista Guitar Player, respondendo sobre equipamento e regulagens, Johnny Winter respondeu que não tinha segredos, colocava todos os botões da guitarra e do amplificador no dez e metia a mão, sem olhar para trás. Esse disco histórico é uma prova disso. São seis faixas antológicas de pura adrenalina de hard blues ao vivo. Esse é um disco para quem acredita em guitar heroes.

Se você é daqueles ou daquelas que torce o nariz para longos solos de guitarra em volume máximo, e acha que isso é pura masturbação musical e que a guitarra é só um detalhe para o rock, então passe longe desse disco. Ou se quiser siga o meu conselho: compre esse registro monumental, mude os seus conceitos e perceba que existe vida inteligente e sentimento musical nesses solos que foram capturados ao vivo, sem retoques ou enganações.

Esse disco contém faixas gravadas em três espetáculos diferentes, Swing Auditorium, San Diego Sports Arena e Oakland Coliseum, em 1976. Não existem faixas ruins nesse disco, cada uma é melhor do que a outra. Esse é um repertório impecável, simplesmente matador. O guitarrista texano está em sua fase divina de guitarra “Firebird”, da Gibson, com um leve toque de phase em seu timbre lotado de médios e amplificadores Marshall no talo. Johnny Winter desfila o seu leque de escalas pentatônicas, menores e de blues em velocidade estonteante, completamente distante dos malabarismos circenses dos fritadores.

A famosa base de Johnny Winter nos anos 70, em que ele se aproxima bastante do rock em seu fraseado blueseiro, está presente como uma verdadeira usina de força. Floyd Redford, com uma Gibson 335, semi-acústica, segura a base e faz solos e duelos precisos. A cozinha é formada por Randy Jo Hobbs no baixo e Richards Hughes na bateria, de entrosamento perfeito e peso puro, essa é uma dupla dos sonhos de qualquer guitarrista solo. O resultado dessa química é de impressionar qualquer um. As apresentações seguem a linha do início dos anos 70, com longos improvisos no gás total, sem deixar o público respirar.

O disco abre com “Bonie Moronie”, com uma introdução de Johnny Winter sozinho na guitarra. Que ele é albino todos sabem. Que ele é negro de alma e voz todos sabem, mas essa primeira faixa serve para o ouvinte saber exatamente com quantas notas se faz o autêntico hard blues. Melhor abertura impossível. No segundo solo dessa música Johnny mostra boa parte dos seus truques, aprendidos em bares e clubes noturnos. O ouvinte já é sacudido em sua quinta geração.

“Roll with me”, a segunda faixa, é típica dos anos 70. O groove dessa música é irresistível, hipnotizante. É o solo mais rockeiro dessa infinidade de solos. Praticamente esse é o song book dos links de Johnny Winter, bands, doublestops, oitavas e ligados diversos. “Rock and roll people” faz o público delirar com seu andamento rápido e pegada alucinada do albino. As frases de guitarra são rápidas e poderosas. Esse é o chamado power blues, o som solta faíscas. Nessa faixa você vai entender porque ele é considerado um dos maiores guitarristas de todos os tempos.

“It’s all over now” já abre com um solo mágico de Johnny Winter, para logo em seguida a banda entrar em uma pegada meio western e meio boogie. Essa faixa tem um dos melhores duelos entre o texano e Floyd Redford. A base que Johnny Winter faz quando Floyd está solando é imperdível. A essas alturas tudo já está pegando fogo. É quando Johnny Winter resolve usar o slide na música “Highway 61 revisited”.

Depois que você ouvir essa versão para o hit mágico do feiticeiro Bob Dylan, você vai pensar dez vezes antes de querer tocar slide guitar. O momento em que Johnny Winter segura a onda solando com slide, apenas com o groove da bateria, é clássico, é antológico, é seminal, é aula pura. Esse momento é pra você aprender a verdadeira função de uma guitarra solo. Ele ainda abre espaço para um solo generoso de Floyd Redford.

“Sweet Papa John” fecha o disco com toda a classe de um grande mestre do blues. Também começa com Johnny Winter sozinho, destruindo a guitarra, depois a banda entra em um blues de andamento lento, tradicional. É mais uma aula de slide. É pra fazer com que esse se torne um dos registros ao vivo mais importantes da sobrenatural década de 70. cara, se você ainda não conhece esse disco, você é simplesmente um vacilão.

Três bandas descoladas
E uma noite massa no meio

A estreante Papagaio do Futuro, a rodada Alegoria da Caverna e sua fantasia de festa Os Transacionais, fizeram uma noite no Café Estação, em Crato, no último sábado 11, de rocks, baladas, reggaes e outras ondas diversas e inversas a mais, para um público médio, mas seleto e sedento de diversões sem trapaças.

Uma grata surpresa foi ouvir o som trabalhado e irreverente da Papagaio do Futuro, uma banda de Juazeiro do Norte, que finalmente faz valer o aspecto urbano daquela cidade, sem a eterna babaquice das caras e bocas do heavy metal e do som fabricado das vídeo-aulas, tão peculiares entre santos e ladainhas de lá. Já a banda de Fortaleza, Alegoria da Caverna, com a competência do seu som, conseguiu dissipar o estigma de terra dos cafuçús daquela capital, o que convenhamos não é tarefa fácil.

A Papagaio do Futuro levou uma eternidade para arrumar o equipamento e definir lugares, enquanto uns brigavam com afinações, cabos e pedais, outros zoadavam em seus instrumentos, uma verdadeira munganga, que deve ser exterminada ontem. O som começou indefinido, completamente embolado, com todos os volumes detonados, encobrindo as vozes e distorcendo o som na frente. A banda não conseguiu equalizar completamente o som no palco e em alguns momentos as três guitarras estavam desafinadas entre si.

Mas isso não conseguiu detonar o som da banda, são erros de uma segunda apresentação de uma banda novíssima, que não tem nem repertório fechado ainda, mas que em cerca de oito músicas a Papagaio do Futuro demonstrou ser a novidade, o diferente, aquilo que se aguarda com ansiedade na cena musical caririense há muito tempo. As três guitarras são muito bem arranjadas, em músicas que mudam constantemente de andamento. Os solos são bem dosados, bem como as timbragens.

As composições empolgam facilmente e já é possível perceber alguns hits em potencial. Faltam alguns ajustes na cozinha, apesar dos grooves marcantes do baixo. Sem dúvida nenhuma o destaque vai para a presença de palco da vocalista Grissa, com vocal possante, figurino exótico e carisma sobrando. A banda liderada por Aquiles, que assina as composições, faz vocal e toca guitarra, tem presente, tem futuro e não esquece a riqueza do passado musical do rock. Foi uma surpresa e tanto.

A banda Alegoria da Caverna apresentou o repertório do seu cd “Gororoba “ , bem como o repertório do seu projeto paralelo Os Transacionais, só de covers brasileiros da década de 60 e 70, com um som bem mais enxuto e solto do que das outras vezes que esteve aqui. A banda tem um repertório autoral que transita entre o rock’n’roll, o funk, o reggae e levadas da mpb. As letras são bem cuidadas, irônicas e fáceis de guardar. A banda tem pelo menos dois hits, a simpática “Mumu de Sabi” e a incendiária “100% Pirado”, o que é fundamental em qualquer banda: música pra galera cantar junto.

Além disso a banda é rodada, tem manha de palco. O som ficou redondinho, sem falhas. O destaque da banda é a sua cozinha, com o peso do excelente baterista D’Angelo e da competência do baixo de JolsonX. A guitarra de Miguel Basile é providencialmente econômica e muito eficiente, o guitarrista domina completamente o seu equipamento e despeja potência em seus solos certeiros e sem firulas. Vitoriano é o frontman. Sua presença é carismática, sua dicção é clara e sua guitarra é fundamental para a estrutura sonora da banda. A presença de palco da banda é massa.

O projeto Os Transacionais é pura diversão. A mudança de repertório foi marcada pela lendária “Misirlou”, de Dick Dale and His Del-Tones, com o guitarrista Miguel Basile incorporando o verdadeiro espírito da guitarra surf. O resto do repertório é uma seleção de pérolas, entre elas, versões impagáveis dos mutantes. Os transacionais é sinônimo de diversão pura, o clima ideal para fechar a noite. O que vimos, ouvimos e dançamos foram as tendências do novo em pleno diálogo com o velho, mas sem nenhuma espécie de velhacaria.

terça-feira, 7 de outubro de 2008


Ação e Arte

Recebi dois números do fanzine “Panflerte” – Demônios e Literatura. De nome sugestivo e iniciativa mais ainda. “Panflerte” é cultura, é diversão e é arte. Essa frase parece batida, mas ela é urgente. Principalmente quando tudo isso está em falta, embora teimem os cafuçús de plantão, que essa falta de cultura é apenas ilusão.

Em tempos de consumismo estelionatário, quase ninguém quer saber de arte, poesia então nem se fala. Mas o que isso importa para quem não teme a morte em velhos catálogos? “Panflerte” está vivo e pede passagem. Que se abram os prostíbulos culturais, principalmente àqueles transformados em redutos, em guetos institucionalizados. Eles querem passar e deixar rastros, vestígios, digitais, impressões e imprecisões, pois só navegar é preciso.

“Panflerte” tem textos críticos, tem charges, tem poesias, sacações e pequenos contos. Todos sob a verve do sangue novo. Isso é muito bom, justamente quando aposentadorias literárias não percebidas, justificam o ocaso. “Panflerte” é formado pelos estudantes universitários, de fato ou de direito, não vem ao caso: Rodolpho Teles; César Weyne, Rodolpho Batista, Nathan Matos, Lucinha Teles e pelo fantasma Le Glitterfinger. O e-mail dos caras é: panflerte@hotmail.com. O fanzine é editado em Fortaleza, o que comprova em partes que nem só de cafuçú vive aquela cidade.

Eles prometeram mandar exemplares para distribuir entre os amigos da arte. Vamos esperar. Por enquanto mande mensagens para o e-mail deles e peça o seu. Creio que logo, logo, o “Panflerte” transforme-se em blog

O embargo das barricadas


Fui demitido sumariamente! Sem justa causa! A esperança me deu um pé na bunda sem pagar nenhum direito trabalhista e sem vestígios legais do seguro desemprego. Agora tenho uma família preste a ser esfarrapada. Estou demitido, mas sou trabalhador. A conspiração me espera. Ela é a última que morre. "Busco agora um trabalho não assalariado, mas apaixonado”. Procuro pelas barricadas que urgem serem erguidas repentinamente com os paralelepípedos da restauração e à luz da igualdade.

Sou adepto da revolução. Aquela que atira, queima e bane. Aquela que troca o perdão pelo extermínio no paredão de fuzilamento. Sem crises espirituais, sem pirataria existencial ou culpas humanistas, venero uma horda selvagem armada até os dentes pelo bem comum e que espuma pelo canto da boca o refazer. A minha herança está selada pelo carimbo da rejeição, está protocolada nos arquivos das margens desse esgoto poderoso que corre a céu aberto, cheio de solenidades, em nome da microfísica do poder. Mas eu luto.

Vasculho as ruas e esquinas. Quero encontrar os levantes dos deserdados. A ira irrevogável dos terceirizados é o meu objetivo. É disso que eu preciso. Empregar a minha força de trabalho - o único bem que eu tenho - na utopia de desintegrar o poder dos dominantes, o tapete e trucidar a sujeira debaixo dele, digo exterminar. As trincheiras devem ser habitadas pelos retalhados, pelas vítimas de tortura da miséria e por todos mitigados pelo poder. Vejo que as moscas e as larvas solidificam a fedentina do poder. Vejo que o poder é um arremedo de próteses. Mas não vejo as barricadas que procuro e nem aqueles vomitados pela abastança.

As guerrilhas travadas pelos votos estão decompostas, fatoradas ao mínimo denominador comum. Já disse Walter Benjamim e agora vejo que tomam posições atrás dos sacos de areia e dos escombros, “os pobres que usam luvas, aqueles que farão fortunas”, ao pedirem esmolas ao poder, tal qual o doutrinador Blanqui, com suas luvas pretas. O choro pelos cadáveres agora é de lágrimas inférteis. O eleito e o não eleito são os mesmos. É quando reina a tréplica da réplica. As armas estão municiadas com balas de festim. O silêncio armou o seu concreto, fez uma blindagem para proteger a ditadura das malfeitorias, enquanto o povo ajeita a maquiagem diante do espelho, é hora de brilhar. O cinismo satânico é um belo adereço de carnaval.

Satã está sendo satirizado. Diante da institucionalização da roubalheira política, satã perdeu os dentes e a maestria da vileza. Sua capa vermelha está sendo replicada, virou arte de consumo. O seu sorriso devastador ilustra calendários de borracharias suburbanas. Seu vozeirão radioativo pode ser escutado em discos piratas de bandas impostoras de metal evangélico de pouco mais de dois reais. O poder pode ser derrubado, mas vai se recompor em seus fragmentos, como vilões alienígenas de filmes classe b. É quando o mesmo muda para ser ele mesmo, sem economia de fragmentos ou descontinuidades.

Das barricadas surge então a maior e mais poderosa prostituta do universo: a corrupção. Marx escreveu em “O Dezoito Brumário”: “Quando os puritanos protestaram contra a vida depravada dos papas..., o cardeal Pierre d’Aill trovejou contra eles: - Só o diabo em pessoa ainda pode salvar a Igreja católica, e vós exigis anjos!...” Só o roubo à propriedade, o perjúrio à religião, a bastardia à família, a desordem à ordem, podem salvar a sociedade - escrevia o pensador. Assim também é com a sociedade brasileira nessas eleições municipais. O satã pós-moderno demitiu a esperança, que chorosa molha a calcinha de tanto soluçar.

Agora, diante de papéis amassados, de bocas de urnas canastronas, de fiscalizações de compadres, conchaves de última hora e euforias dissimuladas pela vitória da honra, da família e do patrimônio público, andamos os três, com a desolação depressiva de uma demissão implacável: eu, a esperança e a revolução. Enquanto isso, Marx toma um cafezinho ali, recolhido ao passado.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

VEJA "LAR DE MARAVILHAS - CASA DAS MÁQUINAS - EM http://peduvido.blogspot.com/

segunda-feira, 22 de setembro de 2008



Hermeto Pascoal ao Vivo
Em Montreux Jazz


Naquela noite única de 1997, quando Claude Nobs anunciou Hermeto Pascoal como sendo qualquer coisa de inacreditável, com um inesperado senso de improvisação, harmonia, composição e execução, vindo da distante e múltipla música brasileira, ele não sabia exatamente que estava fazendo parte de um momento iluminado, singular, repleto de transcendência musical e espiritual. Estavam lá no palco, junto com o mago Hermeto, todos os deuses da natureza, tocando e encantando.

Em todas as músicas do repertório daquela noite o público foi brindado com o mais alto nível de improvisação que um músico pode desenvolver. É um momento sobrenatural. A capacidade criativa de Hermeto e banda, aliás, umas das maiores bandas já formadas no Brasil e no jazz universal, é de uma grandeza incabível em palavras. A interação do mago com seus músicos e com a platéia é qualquer coisa inexplicável, são momentos de criação viva, na hora, música brotando no suor.

Hermeto tocou tudo que se possa imaginar: piano, clavinete, sax soprano, sax tenor, clavieta (escaleta), flauta, e improvisação de voz. Em todos esses instrumentos ele quebrou tudo, o seu improviso de escaleta em “Lagoa da canoa” é fantástico, ultramoderno, cheio de swing, harmônicos, vozes de embocaduras e escalas nada diatônicas, em um instrumento extremamente limitado. Essa mesma faixa começa com um solo de bateria de Nenê,que não tem explicação plausível. Essa obra-prima ainda tem um solo de tenor de Cacau que é de outro mundo. Nivaldo Ornelas dá uma aula, nessa mesma música, de ritmos e pegadas brasileiras em um sax soprano, através de saltos de notas e intervalos inacreditáveis. A faixa termina em apoteose.

Esse é apenas um dos momentos mágicos desse show. A faixa “Remelexo” é uma improvisação de voz de Hermeto Pascoal, em que ele transcende e faz da voz um instrumento de improvisação, com escalas e letra ao mesmo tempo. A banda não conta conversa e entra na onda.O chorinho “Fátima”, vira o maior jazz, com uma improvisação de Hermeto Pascoal na escaleta, o instrumento que ele está tocando na capa do disco, em cima de uma harmonia mais do que complexa. Ele não só reinventa esse instrumento como reinventa as possibilidades de improvisação em uma seqüência harmônica de desempregar muitos músicos.

Em “Terra verde”, “Maturi” e “Quebrando tudo”, Hermeto avessa o clavinete, que é outro instrumento muito limitado, que nas mãos do bruxo ele ganha cinqüenta mil oitavas. Hermeto Pascoal nessas músicas, que são emendadas pelos improvisos, faz citações de outras e encontra atalhos atonais descomunais, além de descobrir timbres jamais escutados nesse instrumento, em um desafio de solfejo e teclas histórico, com a banda esbanjando dinâmica. Aliás, que banda é essa, velho? Dá vontade de chorar de tão emocionante que é ouvir esse disco.

Nenê de bateria; Itiberê Zwarg no contra-baixo; Jovino dos Santos de harmonias impossíveis ao piano e clavinete; Zabelê e Pernambuco nas percussões diversas; e mais Nivaldo Ornelas, sax tenor e soprano; Cacau, sax tenor e soprano. Eis os ingredientes da poção mágica do bruxo Hermeto. Esse show histórico era pra terminar com a fenomenal “Forró Brasil”, uma delirante linha melódica, rápida e cheia de acidentes. Mas o público não deixou e ele voltou com a delicada faixa “Montreux”, composta no hotel, especialmente para o festival. O público ainda delirou com os improvisos “Voltando ao palco” e “E adeus” , para encerrar definitivamente aquela magia inesquecível e histórica.

Esse é um disco único.

domingo, 21 de setembro de 2008

Dos rituais

As catapultas se coçam
Com as pulgas prostitutas
Que pugnam os desertos
No silêncio dos inquietos

As velhas linhas urbanas
Se coletivizam em divisas
Além da constante de Planck
No silêncio dos inquietos

Esse trem metropolitano
Que segue rasgando o finito
Babando sobre os trilhos
É cheio de almas ruidosas

Esse escrito circunscrito
Que corta as unhas e vai ao
Supermercado todo mês
É cheio de almas ruidosas

Assim as andorinhas procriam
As telas eletrônicas entram no cio
Os oxímoros se oxidam e as
Velhas virgens trocam de sexo

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Das Tensões

Ainda estão lá
Aquelas três moedas surradas
Em cima do balcão velho

Eram para comprar o universo
Mas o espaço é curvo
Cheio de esquinas iluminadas
Por lâmpadas fubazentas

Ainda tristes
Os cotovelos arredaram
Sobraram as cotovias embriagadas
Descendo a rua de pedra lavada

A saudade é essa imensidão
Encurtada pelas palavras
Que também não pode
Ser comprada

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Tem novas postagens no blog http://peduvido.blogspot.com/ confira!
Dos objetos

E logo cedo
Foram distribuídas as senhas
As montanhas permaneceram ao longe
E a distância conservou-se cavalgando
No ar o cheiro de carne enlatada
Revelava os dias em campana

A inteligência prática das
Máquinas de refrigerantes e a necessidade
De transformar das esferográficas
Ufanaram afagos agoniados
Em todos os objetos sensibilizados
Pelos estranhos desejos

As carpas decoravam
Os aviões suspendiam
Os caixas condecoravam as dores
Os terminais anoiteciam o amanhã
E aquelas três crianças superavam
Povoavam o vácuo com vestígios nus

domingo, 7 de setembro de 2008

Manel de Jardim na área


Foi ontem, num show de Leninha, no novo teatro do Sesc de Juazeiro. Ele estava lá, com sua arrasadora ironia existencial, servindo como fenômeno sobrenatural para aqueles que pensam ter controle pleno dos seus domínios. Manel tocou violão, tocou baixo e fez vôos rasantes e altos, demonstrando como a magia não pode ser engarrafada e vendida como um produto capaz de transformar a sua vida. A magia de Manel é sobreviver sempre, sem desculpas e solenemente. Percebeu na segunda música que o seu violão estava desafinado, depois disso entrou definitivamente no clima David Linchiano do show e não saiu mais de lá, está eternizado em um cartaz misterioso, pregado nas paredes dos becos e avenidas do tempo.

O show teve lá suas peculiaridades que matizam ainda mais o cartel de dúvidas sobre ser o Cariri um celeiro cultural, mas o que importa é que Manel estava lá, contrariando o destino e os urubus de plantão. Sei que em todo lugar existem urubus, mas em nenhum lugar existe uma concepção existencial tão complexa desses seres como aqui no Cariri. Nós convivemos com urubus perfumados, renomados, constitucionais, religiosos, dadivosos, afetados, educadamente infames, sorrateiramente canalhas, delicadamente patifes, escandalosamente sem escrúpulos, de todas as camadas e origens, de toda estirpe empresarial e de toda sorte de opção sexual, mas sempre urubus, com suas tarjas de rapina suprema instalada em seus fígados.

Manel tem uma postura magneticamente anarquista diante da vida. Passou seis dias em coma, seu corpo sucumbiu à loucura narcotizada impostas pelas armadilhas sociais. Estranhamente fez da UTI a sua ponte de desconexão por mais de dez dias seguidos. Quando acordou, segundo ele, mais frio do que uma pedra de gelo, o médico estava passando o gel da ressonância magnética e ele ironizou: “Como é doutor, o bebê tá na posição certa?”. O médico disse que a coisa tava séria e que ele teria que tirar a sua pressão. Manel respondeu de imediato com uma pergunta: “Vai botar ela onde? A coisa ta ruim com ela, imagine sem ela”. Manel é assim, um anarquista existencial. Para ele não importa se isso é certo ou errado, sempre afirma que a vida é dele.

Mas o seu talento, Manel, é nosso, por direito, por fama e por difamação. Eu, que morro um pouco mais por dia de desilusão, senti novo ânimo em continuar convivendo com tanta alma sebosa que infesta esse velho Cariri. Mais do que nunca eu sei que devo continuar desconfiando das boas intenções do sistema, dos panos bem passadinhos, das maneiras meticulosamente ensaiadas, dos sorrisos de dentrifícios, dos diplomas conseguidos na calada da noite, e dos carrinhos mais polidos do que a autenticidade. Mas, mais do que nunca sei que a vida vai nos provê sempre uma nota bem dissonante, capaz de revelar a fraude do coro dos contentes. E você Manel, não é uma nota só dissonante, você é um acorde inteiro, ainda bem.

Saúde, meu velho, e continue metendo a mão sem medo de errar. Deixe a consciência musical para quem precisa de bengalas. Nós precisamos é de caminhos, nem que sejam fora das margens. A intuição é fora das margens. É por isso, que se retirarem os trilhos o trem não chega a seu destino. E é por isso que a mediocridade é um trem ultra moderno. Precisamos é ir. Mas ir rindo dos ridentes.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008



As baladas atormentadas
De Nick Cave

Nick Cave é cavernoso no próprio nome artístico. Mas a procedência cavernosa de Nick Cave não é pose. É existencialismo destilado em cinismo, em sátira, em carnavalização religiosa e questionamentos sociais e metafísicos. A mente humana para Cave é uma partitura, que ele mergulha com seu piano alado, muitas vezes muito próximo do piano que Murilo Mendes faz a sua mãe tocar em pleno caos.

“Murder Ballads” foi lançado em 1996 e traz em sua estética refinada, dez baladas sobre assassinos e assassinatos. É uma mistura de músicas do cancioneiro tradicional, composições suas e um cover irônico de Bob Dylan. Esse não é um disco comum e de forma nenhuma é destinado ao escutador medíocre. “Murder Ballads” tem um tom inquietante de esquina suburbana numa madrugada qualquer, enquanto a cidade espera baixar a fuligem do asfalto.

Na voz de Nick Cave as atormentações humanas dão um salto para além do cadafalso. O tema por si só já proporciona desdobramentos inusitados. A maneira como Cave aborda o tema acaba multiplicando essas possibilidades ao impossível. São detalhes sonoros, são entonações, são timbres arranjados exatamente para evocarem sensações das mais diversas, são ruídos perturbadores, são baladas que não são baladas, são universos paralelos dentro de uma regência mágica, que só Nick Cave poderia ter concebido. “Murder Ballads” é uma aula histórica de tensão artística.

A epifania e a catarse estão presentes em cada história contada. Remexer o lado obscuro da mente humana através da música requer requinte sentimental. E isso Nick Cave tem de sobra. O seu som é inebriante, o seu carisma vai desde um porra louca desses perdido numa multidão de concreto até à placidez intocável das paisagens bucólicas do imaginário coletivo. Esse é um disco que vai além da audição e atinge os aparatos ritualísticos da pós-modernidade, com todos os seus viadutos e imagens de alta-definição, bem como muquifos e becos existenciais.

“Song of joy” abre essa viagem soturna em tom profético, com uma carga dramática digna da apologia musical de Nick Cave and The Bad Seeds. Essa é uma das maiores obras-primas da música pop. Ela conta a história de um homem que tem sua mulher e suas três filhas assassinadas por um maníaco que escreve versos de Milton com o sangue das vítimas. É impressionante a textura criada pela banda. O guitarrista Blixa Bargeld consegue ilustrar o sofrimento daquele homem através de ganidos e espasmos de seu instrumento. A poesia dessa faixa é genial.


“Stagerr Lee” é uma música do cancioneiro tradicional, que aqui recebe um arranjo matador, sem trocadilhos. Existe um encantamento extremamente cínico nessa música. Sensações arrebatadoras podem ser notadas saindo dos auto-falantes como balas avermelhadas indo em direção à decadência do ser humano. Essa música narra um crime passional do cafajeste “Stagerr Lee”, com Blixa Bargeld extrapolando em sua estética minimalista de extrair sons esquisitos de sua guitarra.

O disco tem participações mais do que especiais, além da própria imanência da banda The Bad Seeds, na sua mais alta perfomance. P.J. Harvey faz dueto com Nick Cave em algumas faixas, com destaque para a belíssima Hanry Lee. A cantora australiana Kylie Minogue faz dueto com Cave na faixa “Where the wild roses grow”, responsável pelo sucesso de público e crítica desse cd. Essa é outra obra-prima do pop universal. Imperdível. Poesia em seu mais alto grau.

Depois de tantas idas e vindas sobre os rastros da alma humana, “Murder Ballads” encerra essa experiência transcendental com um cover de Bob Dylan, “Death is not the and”. Essa, que é uma das pérolas do repertório de um dos maiores poetas do mundo, recebe o tratamento ambíguo que seus versos exibem. É uma mistura de sátira e aconselhamento, alertando cinicamente que a morte não é o fim, nem como aniquilamento e nem como propósito.

Se você não conhece ainda esse disco, não perca a sua vida com futilidades, escute, compre e guarde e tenha as letras devidamente traduzidas. Insubstituível.

domingo, 24 de agosto de 2008






A rua misteriosa dos Stones

“Exile on main St.” é o típico album de rock cheio de mistérios. A própria banda foi envolvida ao longo da história por uma áurea de esquisitices e lances obscuros. E esse é justamente um dos encantamentos dessa banda, que é considerada por muitos como a maior banda de rock de todos os tempos. Há controvérsias.

“Exile on main St.” foi concebido como um disco duplo, com 18 músicas divididas em quatro lados. O clima difuso do lp começa pela capa, cheia de pequenas fotos aleatórias, cheias de bizarrices. Tal qual foi a gravação desse disco, que é uma mistura de sobras de estúdio, gravações guardadas entre 1968 e 1972 e material novo, composto para o lançamento.

As gravações foram iniciadas em um antigo banker da gestapo durante a Segunda Guerra Mundial, alugado por Keith Richards. Nellcôte, um antigo palacete localizado no interior da França, próximo à Nice, foi o palco de muitas histórias malucas. A piração tomava de conta do guitarrista, mergulhado em milhares de dólares investidos em heroína e todo tipo de droga existente. Lá eles receberam inúmeras visitas mais malucas ainda, como a de Burroughs, poeta beat; do novelista Terry Southern, também beat; e do compositor de country-rock Graham Parsons, falecido pouco tempo depois, vitimado por overdose.

Bill Wymam e Charlie Watts estavam em abstinência. Mick Jagger esteve ausente quase que o tempo inteiro, recém casado e com filho recém nascido. Keith Richards estava solto e comandou praticamente tudo. A zoeira foi tamanha que a polícia teve que exigir a expulsão das visitas intoxicadas. Logo depois de encerrada a temporada na França, o material foi levado por Mick Jagger para Nova York, onde inúmeras overdubs foram feitas por diversos músicos.

O resultado disso tudo é uma massa sonora tipicamente stoneana. Rock, soul, blues, booggie, shuffle, western e baladas formam o caldo desse disco de mixagem tosca e som cru, com a bateria de Charlie Watts como porto seguro. Esse é um disco para ser escutado no volume máximo, pois os instrumentos foram gravados praticamente na mesma altura dos vocais, causando um certo caos devido ao excesso de overdubs em muitas faixas. Tudo resolvido com alguns decibéis desaforados do seu som.

Mick Taylor salva inúmeras faixas com a sua pegada bluseira. Vários artistas tocaram contra-baixo, mas todos sem nenhum destaque. A guitarra de Keith Richards às vezes soa como seminal e às vezes soa completamente descartável. Mas o todo tem uma pegada incrível, inexplicavelmente genial. Esse álbum tinha tudo para ser péssimo, mas no entanto é uma verdadeira obra-prima, fruto dessa dialética de interesses e estéticas sonoras de seus músicos. Mick Jagger nunca foi um grande cantor, mas ele encanta e aqui a sua magia aparece de forma suprema.

“Rock Off”; “Rip this Joint”; “Tumbling Dice”; “Happy”; “Sweet Virginia” e “All Down the Line” são verdadeiros mísseis atômicos. Com certeza essa não será uma audiência normal, pois você sentirá um ambiente sonoro narcotizado o tempo inteiro, além do detalhe de você não entender praticamente quase nada do que Mick Jagger berra. Com o tempo você percebe que existem arranjos fenomenais de rock’n’roll por trás de tudo isso. A coesão da banda está exatamente nesse clima enfumaçado, difuso e tosco de se fazer música para ser ouvida em todo volume. Definitivamente esse não é um disco para conservadores ou puristas. Esse é o puro rock, igualado ao mesmo som alcançado por bandas como Faces, James Gang, Hot Tuna, ZZ Top, Neil Young e Crazy Horse, The Band e Rod Stewart em seus primórdios.

“Exile on main St.” é imperdível por diversos motivos: é um disco que exala mistérios; é um disco que fornece segredos sonoros a cada audição; é uma massa sonora de tirar o fôlego quando escutada no talo; e acima de tudo, é rock’n’roll na veia, com todos os requintes que o gênero proporciona. Esse é o tipo de disco que se você escutar uma vez, você jamais se livra. É um verdadeiro vício.