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Crato, Ceará, Brazil
Um buscador, nem sempre perdendo, nem sempre ganhando, mas aprendendo sempre

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Já quatro da madrugada

Um herói licenciado pela Marvel
Um refil de desodorante adulterado
Uma revista masculina lacrada
Um livro qualquer de Augusto Cury

Ao lado da cama uma mesinha
Em cima dela os tranqüilizantes
Meio copo com água São Geraldo
E um anúncio dos classificados

À frente do quarto e sala fica uma
Loja imensa do grupo Extra
Ao fundo todas as ilusões perdidas
Estão jogadas num beco sujo

Dentro do guarda-roupa entre os
Fetiches e os objetos íntimos
Está o crachá do IML bem ao lado
De uma velha lata de panetone

Nela estão guardadas todas
As fotos tiradas sorrateiramente
Dos cadáveres femininos com suas
Vulvas avulsamente mortas

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Três para uma

Três parcas rindo
sentadas no banco da praça
chupando picolé de tamarindo

Três traças ouvindo Wando em um canto
obscuro da sala sendo lavada no domingo
ao passo do repassado

Um policial assistido psicologicamente
Um doutor diplomado à distância
Um grande postador de blog

Três oportunidades únicas
socadas em uma garrafa pet reciclável
para Anunciada deixar de ser assim

Mas ela não alivia em nada a sua sede
prefere trepar com meninos bem meninos
enchendo a boca com seus leitinhos

domingo, 22 de novembro de 2009


OS CÃES DE CAIM


A raça humana não existe mais. Foi extinta ante o tinto da tinta, bem muito às quantas. Que se dane a compaixão. Que seja travestida de miséria quântica a última misericórdia. Sem cordialidades: deus foi rebaixado de posto, o diabo foi remarcado em promoção de camelô, o mito foi des-crito no fel da infidelidade e o homem foi mentecaptado, jogado em catapulta literária para o mais puro em finito. Tudo isso você pode encontrar no último Saramago, Caim, um livro que se apropria de tudo aquilo que é proscrito.

Diz a imprensa - que quase sempre é imprensada pelo empreendimento e quase sempre muito bem embalada para presente, sem nenhum futuro – que o autor português começou a planejar o seu novo livro há muito tempo atrás, mas só em dezembro de 2008 começou a escrever, e que ainda em quatro meses deu por terminado. Em verdade, segundo Saramago, foi um transe experimentado inusitadamente. De fato não importa o tempo. O livro foi publicado e com ele vieram o deleite e as velhas polêmicas geradas desde o seu grandioso O Evangelho Segundo Jesus Cristo, um dos maiores exercícios literários de todos os tempos.

Caim fortalece o legado irônico de Saramago e a sua técnica invejável de contador de histórias. Seus truques são manjados. O que faz dele o maior escritor vivo é exatamente a habilidade que ele tem em encantar com as mesmas ferramentas. Os parágrafos imensamente imensos; a pontuação desalojada; a metalinguagem refinada; a polifonia intricada; a diegese descomunal; os arabescos neo-barrocos; o dialogismo despido do utilitarismo vigente na literatura de mercado; o fantástico; a suprema ironia e o profundo desdém pelo convencionalismo da ética humana; além de outros pormenores; estão todos lá, como jóias de um tesouro pertencente a um pirata movido pela sagacidade ímpar de sabotar toda a dissimulação da humanidade.

Em Caim existe um vórtice que aniquila o tempo e o espaço, um velho sonho do homem. Caim é levado a percorrer vários caminhos míticos do velho testamento, sem cronologia e sem geografia estabelecidas dentro de uma linearidade. A trajetória de Caim é a própria trajetória da dessacralização de todos esses mitos elencados no enredo de Saramago. Da mesma forma em que o narrador do incomparável O Evangelho Segundo Jesus Cristo faz questão de se distanciar do tempo mitológico, citando referenciais da realidade contemporânea, através de um cinismo singular, o narrador de Caim também o faz, como na passagem em que ele traça um paralelo entre a destreza náutica da arca de Noé e a lerdeza de vôo do Zeppelin Hindenburg.

Além da destituição da autoridade cosmogônica Saramago se aprofunda ainda mais nas frestas da exegese do Velho Testamento e provoca judeus, católicos e quem quer que seja e que esteja ligado ou religado à legitimação da palavra revelada de qualquer religião. Não há perdão para Saramago, para ele o discurso religioso é uma grande trapaça. Quando ele coloca deus e o diabo com minúsculas, ele não só rebaixa o mito da divindade e da queda, através de uma humanização das duas maiores entidades do eterno maniqueísmo entre o bem e o mal, como também ele rebaixa a própria condição humana ao colocar os dois como sádicos, violentos, sujos e sem escrúpulos, tal qual a escória humana que controla as nações e as corporações. Esse é o grande trunfo lúdico de Saramago: entornar a humanidade e sua história dual de mito e realidade em um só caldo nefasto de decadência absoluta, através de aproximações e distanciamentos, construções e desconstruções. Não é a toa que Caim troca de identidade com Abel. Ora está vivo, ora está morto.

O assassinato de Abel é apenas o ponto de partida para uma série de aniquilamentos. A linguagem literária de Saramago é tão carregada de significados que a própria eloqüência e a grandiosidade que se requer para uma narrativa épica do fim da humanidade para um recomeço promissor, foram categoricamente desconstruídas por pequenas narrativas de coisas pequenas dos personagens em um cotidiano pequeno, que aparentemente não têm razão ou força literária. O próprio assassinato é narrado em duas frases rápidas, sem qualquer espetaculismo. Esse aniquilamento se desdobra em fatos diversos, como o aparecimento de Lilith em mito e em obscenidade, que representa a mulher decaída, mas poderosa em sua capacidade de procriar a decadência e o mal. Essa não é a única amante de Caim, que se deita em lascívia e luxúria com todas as mulheres que cercam Noé, mas acaba assassinando todas, para que a raça humana não deixe vestígios, apenas ele, Caim, a decadência imortal.

É possível perceber a força impiedosa do esvaziamento na narrativa de Caim nesse fragmento tão desconcertante quanto magnético, um diálogo travado entre Deus e Caim, diante de Noé e sua engenhosidade: “(...) Não me disseste que vieste aqui fazer, disse deus, Nada de especial, senhor, aliás não vim, encontrei-me cá., Da mesma maneira que te encontraste em Sodoma ou nas terras de us, E também no monte Sinai, e em Jericó, e na torre de babel, e nas terras de nod, e no sacrifício de Isaac, Tens viajado muito, pelos vistos, Assim é, senhor,mas não que fosse por minha vontade, pergunto-me até se estas constantes mudanças que me têm levado de um presente a outro, ora no passado, ora no futuro, não serão também obra tua, Não, nada tenho que ver com isso, são habilidades primárias que me escapam, truque para épater Le bourgeois, para mim o tempo não existe, Admites então que haja no universo uma outra força, diferente e mais poderosa que a tua, É possível, não tenho por hábito discutir transcendências ociosas (...)”.

Caim é para ser lido sem os olhos do fundamentalismo e sem a estupefação imbecilizada do burguês diante do mito esfacelado em pedaços. Se cabe alguma crença na leitura desse míssil nuclear teleguiado pelos séculos sem fim amém, é justamente a crença suprema no poder infalível da grande arte não resolver absurdamente nada, inclusive o absoluto, com todos os seus disfarces noturnos e diurnos em ser aquilo que é, sem nunca ter sido.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

A eternidade de um segundo

Arrastem o corpo de Ramiro
Por todas as ruas estreitas
Em torno do mercado central
Risquem sem piedade com
O sangue fresco toda a largura
De toda avenida perimetral

Cortem os sinais vermelhos
E com o zoom de nano celulares
Registrem amadoristicamente
Restos de carne de músculos
E de gordura presos ao asfalto e
Postem os arquivos na rede

Sem nenhuma trapaça deixem
Que ele vire carcaça exposta
Pendurada no próprio mau cheiro
Bem em frente às oportunidades
Do maior Atacadão de um real
Que fica vizinho à moderna lotérica

Mas não esqueçam nunca de
Rejeitar com toda a veemência
A mais remota possibilidade da
Décima terceira Alice também ter
Sido maravilhada ao ser bolinada em
Sua volumosa vulva de breve idade

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

193 minutos depois

Dos danos da alma
E da efusão dos afazeres
Filomena tem a precisão
Recenseada de uma bomba
De gasolina eletrônica fincada
Além dos vapores submersos

Abismada em cismas de
Recombinações sentimentais
Ela deriva o delírio de rever
Averiguações teóricas sobre
A tese dos simulacros do
Francês Jean Baudrillard

Desconhece e desconhece
Caminha sozinha sobre o
Concreto escovado da calçada
Entra na loja de necessidades
Aberta vinte e quatro horas
O caixa baba o sono imperfeito

Ela sempre compra
Absorventes com abas após
Se masturbar menstruada
Na penumbra de velórios
Até ser enxotada por Deus
Pela madrugada a fora

sexta-feira, 14 de agosto de 2009



O Cavaleiro Inexistente – Italo Calvino
A retroversão da ausência

Italo Calvino é um arquiteto da palavra e um contador de histórias cheio de encantamento. A inventividade de Calvino tem muitas facetas e uma delas é o estranhamento fantástico de seus enredos singulares, fragmentados em um caldeirão de signos e referências. “O Cavaleiro Inexistente” faz parte da hiperbólica trilogia “Os Nossos Antepassados”, em que o autor apresenta uma Idade Média ludicamente destituída das suas idealizações.

A ironia, os jogos literários, as paródias, as intertextualidades, a metalinguagem e o experimentalismo fazem de Italo Calvino um dos maiores escritores do século XX. No entanto, todo esse aparato literário por si só não é suficiente para projetar um escritor no grupo dos essenciais. É preciso ter voz única e uma especificidade que justifique o falível e o infalível inerente à autenticidade. Isso ele tem de sobra. As pouquíssimas páginas de sua trilogia primordial atestam todo seu talento ímpar, através de um poder de síntese mágica, reservada para uma minoria.

“O Cavaleiro Inexistente” teve a sua primeira edição em 1959 e conta a história impossível de um nobre cavaleiro das gloriosas tropas de Carlos Magno, que inexiste em sua armadura reluzente. Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, contraria a existência através da sua inexistência que existe. Ele é o último de uma linhagem legítima de nobres idealizados em meio a uma decadência generalizada prestes a esfarelar os valores de uma era inteira.

A voz metálica dentro da armadura impecável é carregada pela angústia anônima dos destinados a religar o fim ao início da história, que se recusa a passar e se quer eterna. O paladino Agilulfo é decidido a se entregar à causa cristã, respaldada que é pela poderosa armada do grande imperador Carlos Magno e sua sede de conquista em nome de Deus. Entre uma batalha e outra Agilulfo tem a sua condição de nobre cavaleiro questionada. De imediato ele parte em busca de provar a sua honra, vai atrás de uma virgindade defendida em um passado remoto. Isso é suficiente para um enredo inesperado criar forma.

A engenhosidade de Calvino não está apenas na criação em abismo, em que uma freira é condenada a escrever o próprio livro da sua vida – que é o livro que se lê -, tendo Agilulfo como uma esfinge incapaz de decifrar o seu cativo enigma. Calvino vai além disso, ele adiciona uma farta dose de ironia anárquica onde existia apenas o riso de Cervantes ao desconstruir o cânone dos romances de cavalaria, além de permear uma densidade de signos e símbolos, construtora da opacidade maior desse enredo maravilhado. Italo Calvino desdobra Cervantes e Rabelais em um constante processo de metalinguagem, de apropriações e desapropriações estéticas.

Através da simetria insípida, racional e burocrática de Agilulfo, que se auto proclama instrumental: “Não ofendo ninguém: limito-me a explicitar fatos, lugar, data e uma grande quantidade de provas!”, Calvino aponta para o objeto deslumbrado com o próprio objeto, como um simulacro da eternidade que expurga qualquer resquício da subjetividade e da miserável paixão humana, alimentada pela assimetria do aleatório.

Agilulfo tem voz, mas não tem linguagem pulsante. Ele não conhece o sabor da derrota, do fracasso, ele é um infalível sem falo, por isso inumano, apenas uma farsa, uma fantasmagoria. Ele é a própria embalagem a vácuo da assepsia contemporânea, como uma cosmogonia que revela o universo do nada, da antimatéria. Mas isso não é tudo. O enredo reserva ainda muitas surpresas, através de uma narrativa extremamente encantatória, hipnotizadora, revestida de um humor refinado, capaz de criar cenas verdadeiramente antológicas dentro da literatura universal. O mais espantoso é que tudo isso está contido em apenas 133 páginas.

Em qualquer obra de qualquer escritor medíocre, tipos como Gurdulu, o escudeiro mais improvável das histórias de cavalaria; a viúva Priscila, que tem o caos dos desejos sexuais pintado em suas unhas libidinosas; Torrismundo, que arrasta um baú de ressentimentos insolúveis; Rambaldo, que se deslumbra com a precisão de Agilulfo, mas que se enreda nos vacilos viçosos da paixão; e Bradamante, a própria divisória entre o sagrado e o profano em sua eterna guerra pelos caminhos errantes da terra; precisariam de páginas e mais páginas para respirar e ter vida. Com Italo Calvino não, pois ele é mestre.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009



O resto é ruído
Escutando o Século XX – Alex Ross


A complexidade da arte no século XX é verdadeiramente inegável. Suas várias tendências e suas várias implicações histórico-filosóficas exigem agora uma reapropriação desse material denso e opaco para uma melhor leitura e compreensão. No campo da música clássica esse é um livro que preenche essa funcionalidade com uma invejável grandeza e fôlego, fornecendo referenciais e propondo redimensionamentos essenciais. “O Resto é Ruído – Escutando o Século XX”, de Alex Ross, editado pela Companhia das Letras, 679 páginas, tem lugar garantido em qualquer estante destinada às obras fundamentais.

Alex Ross é um renomado crítico musical americano. Só mesmo a hipocrisia e a falta de maturidade intelectual podem contestar o papel da crítica em qualquer ambiente artístico. Alex Ross é crítico de música clássica contemporânea da revista “New Yorker”. Além de um vasto conhecimento teórico de orquestração e harmonização, ele também apresenta nesse livro estupendo, um meticuloso trabalho de pesquisa documental, que resulta na revelação de um complexo aparato histórico que deu sustentação para a origem das inúmeras tendências analisadas tanto no cenário da música clássica contemporânea, como no jazz, no rock e no pop.

Ao longo de quase 700 páginas, Alex Ross mostra como o mundo viu a ideologia romântica austro-alemã dar lugar a uma multiplicidade de tendências que surgiram a partir do abandono gradativo da tonalidade em busca do atonalismo, do serialismo, das intervenções, do minimalismo, das colagens, dos ruídos e das preparações eletrônicas. O grande lance de Ross é ressaltar como a música, e qualquer expressão artística, não se desvencilham do seu tempo, da sua política, da sua economia, da sua filosofia, da sua cultura e dos seus arquétipos. Outra cartada de mestre de Ross é evidenciar a influência direta dos bastidores no resultado final das relações de trocas no mercado simbólico da dita música séria, de concerto.

Depois da leitura dessa obra-prima você compreenderá perfeitamente como os dois grandes conflitos mundiais foram importantes para o surgimento do radicalismo em experimentações estéticas das mais diversas. É muito gratificante entender como a ação de regimes totalitários como o nazismo, o fascismo, e o comunismo, bem como a esquizofrênica democracia americana da guerra fria atuaram diretamente no cenário musical de forma nefasta e hedionda. Da mesma forma que é possível, logo nos primeiros contatos, conceber o quanto que, infelizmente, é plausível a presença do preconceito racial, econômico e sexual, por trás dos grandes nomes da música clássica.

Em “O Resto é Ruído”, Alex Ross esmiúça obras, autores, grupos, escolas, tendências e dissidências da música clássica do século XX e XIX, com um conhecimento de causa impressionante. Ele aponta relações estéticas, influências e desdobramentos a partir da análise cuidadosa de grandes obras, cada uma inserida em seu tempo e em sua localidade. Assim fica fácil perceber que o velho mundo não é civilizado como se pensa. Ações e reações se misturam em uma dialética social em que o extremismo e a violência imperam, sejam de forma material ou imaterial.

Além disso, e de outras vertentes embutidas na composição dos capítulos, o leitor encontrará subsídios suficientes para a explicação da decadência e estagnação da música clássica e da conseqüente transformação dos repertórios em verdadeiros museus. Outros mitos também são desnudados, como por exemplo, a concepção imaculada de que a música clássica não tem brega, não tem música de má qualidade. Entre inúmeros nomes e tendências, Alex Ross vai mostrando quem é quem no cenário da música clássica do século XX, quem atravessou o século XIX como canastrão é quem realmente é responsável por abrir portas e determinar tendências. Na realidade, tudo isso escrito até aqui, é muito pouco em relação ao que esse livro pode oferecer de fato. É necessário que você leia, e acima de tudo, escute.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009






Terra Sonâmbula – Mia Couto
Uma estrada que nunca é a mesma

Mia Couto é, além de um grande contador de histórias, um arquiteto da linguagem, um criador de teias, de corredores e de portas que se comunicam através de espelhos mágicos. A arte literária de Mia Couto está distante dos best Sellers, assim como a obviedade não está inserida em sua lógica criativa. Terra Sonâmbula é o primeiro romance desse moçambicano cheio de imaginações. Lançado em 1992, ele faz parte de uma trilogia do autor completada por “A Varanda do Frangipani” e “O Último Vôo do Flamingo”, em que ele aborda a trajetória moçambicana antes e depois da independência.

Os principais aparatos literários de Mia Couto partem da oralidade, da riqueza cultural, dos mitos e das lendas do seu povo, sofrido e maturado por uma colonização traumática e 30 anos de guerra civil. A poesia está inserida em seu imaginário literário, ela é o esteio em que se apóiam as suas possibilidades de desdobramentos do realismo fantástico, do realismo mágico e do realismo maravilhoso. Ele sofre influências diretas de Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, José Saramago, de outro escritor moçambicano: Craveirinha, e do escritor angolano José Luandino Vieira, autor do estupendo “O Livro dos Rios”.

Mas isso não quer dizer que Mia Couto tenha uma escrita capenga, em que suas influências escrevem por si. Muito pelo contrário, esse é apenas um ponto de partida, pois esse moçambicano escreve porque tem talento e originalidade, além de uma literatura de interferência social viva, mas não panfletária, mas não sectária. Ler “Terra Sonâmbula” é entrar em transe, em comunicação direta com os mundos paralelos e descontínuos da história, é visitar o estranhamento da poesia legítima. O mundo fantástico do velho Tuahir e do menino desmemoriado Muidinga revela um emaranhado de interligações entre a história e a ficção.

O pano de fundo de “Terra Sonâmbula” é a guerra civil de Moçambique e sua portentosa força de destruição e aniquilamento. Mas a perspectiva histórica tradicional é descartada. Não existe a presença de documentos, de datas presumidas, de testemunhos protocolados, de provas e contraprovas. O que emerge das 206 páginas dessa obra-prima contemporânea são os rebotalhos vivos das trincheiras espirituais daqueles que sobreviveram ao massacre indiscriminado ou que morreram anonimamente nas curvas sorrateiras das estradas do destino de um povo.

Mia Couto utiliza a técnica de construção em abismos para desenvolver o enredo de “Terra Sonâmbula”, que narra a trajetória fantástica de Tuahir e Muidinga, que vagam pelos ermos de um país devastado pela sangria desenfreada provocada pela insensatez humana. Depois que os dois encontram um ônibus carbonizado na beira da estrada, o velho resolve fazer morada, a contragosto de Muidinga, que não vê futuro permanecer ao lado de tantos cadáveres. Depois de resolvido que se abrigariam ali, eles buscam enterrar os mortos. É quando Muidinga encontra uma mala ao lado de um corpo perfurado por balas. Nela estão os maravilhosos cadernos de Kindzu, que jaz ali mergulhado em seu silêncio misterioso.

As histórias de Muidinga e de Kindzu irão se encontrar e se misturar, da mesma forma que a história e a ficção. A narrativa de Mia Couto é repleta de oralidade e de narrativas dentro de outras narrativas, em uma circularidade mágica em que desfilam tipos e estirpes, deuses e homens, identidades e entidades, através de uma reflexão densa sobre a necessidade de se juntar os pedaços e as desapropriações materiais e imateriais de um povo fustigado ao extremo pela tragédia, pela separação e pelo deslocamento. Após iniciar a leitura dos cadernos de Kindzu, Muidinga percebe que a estrada muda constantemente suas formas e suas paisagens. Com o aprofundamento das leituras ele percebe que ela muda também o significado das trajetórias, dos caminhos e dos transeuntes.

Esse encantamento fantástico se perpetua ao longo da narrativa de Mia Couto, que se desdobra em várias outras recontações mágicas e maravilhosas. Os personagens que vão aparecendo nos cadernos de Kindzu vão trazendo elementos para que Muidinga reconstrua o seu imaginário perdido devido a uma doença. Tuahir, que trabalhava enterrando mortos em covas coletivas e que recolheu Muidinga de um amontoado de cadáveres, passa a perceber que aqueles cadernos podem muito mais do que restituir a memória do seu protegido, eles podem alimentar a própria vontade de prosseguir.

O livro de Mia Couto fala da guerra, mas não através das suas entranhas, mas através das suas sombras, dos seus ecos. Em um jogo de aproximações e distanciamentos, de palavras criadas e veneradas, de junções e disjunções, o leitor vai tomando pé da situação sem que ele queira de fato que essa situação adquira uma forma definida, pois ele descobre pela força poética do autor que aquela é uma história de retalhos, de mosaicos, de ladrilhos pacientemente fixados ao logo dos caminhos e descaminhos. “Terra Sonâmbula” é uma história em que a completude não tem pertinência. E esse é justamente o lampejo genial de Mia Couto: saber ilustrar a força que a guerra tem em descompletar.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009






Arte e artifícios

Desde a propagação dos mitos e das lendas, fundadoras do inconsciente coletivo da humanidade, existem conceitos e definições de arte. A fragilidade dessas elaborações teóricas findantes se dá pelo fenômeno da sincronicidade entre o objeto de arte e o espectador. Entre eles existe um vasto espectro de meios e fins, articulados e desarticulados, construídos ou desconstruídos, que se movimentam esteticamente dentro do implacável arcabouço do tempo, do espaço e da história.

Tendo como ponto de partida o livro “O Ano da Morte de Ricardo Reis”, de José Saramago, mas não como de chegada, pois isso é irrelevante na abordagem da arte, é possível perceber que a criação artística pode até parecer um caminhão de japonês canonizado como o ensimesmamento absoluto da coletividade, mas quando se chega perto é mais possível ainda perceber que cada um tem intestinos e metabolismos próprios, como merdas e proventos distintos. O que define verdadeiramente o fedor da bosta e a eficácia do alimento é a perplexidade crítica do indivíduo diante do objeto.

O enredo do livro não poderia ser mais simples: Ricardo Reis volta do Brasil para Portugal, após a morte do poeta Fernando Pessoa. Uma pincelada solta no impressionismo lúdico das relações interpessoais. Nada mais próprio, nada mais singular, nada mais recolhido ao privado, se não fosse a grandiosidade da inserção criativa, que transborda existências fictícias ou históricas, em ramificações, em derivações e em mosaicos que tendem para o assimétrico a partir das profundezas da sua simetria. Mas é preciso estar atento, pois os códigos dessa obra de arte não trazem manual do proprietário, só mesmo a possibilidade de devolução, caso a satisfação do consumidor não tenha sido garantida. O que é essa a essência legitimadora de toda grande obra, inserida no vasto e esquisito mercado das trocas simbólicas.

As interações criadoras se multiplicam nesse livro feito uma espécie inovadora da criação em abismo (mise em abyme), teorizada pela primeira vez, em 1893, pelo escritor francês André Gide. Ricardo Reis é um heterônimo de Fernando Pessoa, que por sua vez é retomado por Saramago para dar luz ao fim dos seus dias, próximo do seu criador. Mas acontece que Ricardo Reis chega do Brasil a bordo do navio Highland Brigade, lendo o livro “The god of the Labyrinth”, do escritor Herbert Quain, sendo que tanto o livro como o escritor foram inventados por outro escritor, Jorge Luis Borges. Quando Ricardo Reis vai embora para o além, com Fernando Pessoa, depois da simbologia mágica dos nove meses, para vida e morte, ele leva debaixo do braço o livro que ele não consegue terminar de ler, durante toda a narrativa.

Eis a abertura desse livro monumental: “Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade...” Essas palavras iniciais configuram o encantamento fantástico que permeia as 428 páginas desse magnífico exercício de pura arte. O labirinto, as concepções de deus e suas criaturas, dão as caras, de forma extremamente complexa, desde as primeiras palavras. “Aqui o mar acaba e a terra principia.”, é uma intertextualidade invertida do verso que inicia “Os lusíadas” de Camões. Evocando e invocando a suprema fusão épica entre história e ficção. As águas turvas, a cidade pálida, o barco escuro, o fluxo soturno, nos remetem direto à travessia do Aqueronte, ao âmago do maior enigma da humanidade: a morte e seus desdobramentos em labirintos.

Mas esse é apenas um livro que não se enquadra no conceito de arte utilitária. E nem em qualquer outro conceito existente de arte. É apenas arte. Os aspectos que segredam as relações internas e externas do leitor com o livro se estruturam de forma particular, mas a partir de um universo próprio do autor, concebido como um aparelho e não como um aparelhamento. São epifanias mútuas. No entanto, nada impede que em sua teia criativa, o autor insira elementos críticos da, sobre e para a história viva dos homens, enxertados em suas culturas e em seus universos que procriam outros universos. Mas isso é apenas arte. Ou como melhor diz o próprio Herbert Quain em carta escrita para Jorge Luis Borges, no dia 6 de março de 1939: “Sou como as odes de Cowley. Não pertenço à arte, mas à mera história da arte.”

E se o leitor não tiver esses elementos para uma possível compreensão do material estético do autor e do seu aparato criativo? A obra de arte, momentaneamente, não se completa. Mas apenas momentaneamente, pois o seu caráter, como criação, é mesmo fragmentário e descontínuo, ela está viva, independentemente do seu espectador. Obra de arte para mim é isso, o resto é artifício. É claro que esse é um propósito crítico. Como da mesma forma é proposital a inserção da obra de Quain, na obra de Borges, na obra de Saramago, em contraponto com as obras de Fernando Pessoa, Ricardo Reis e Camões.

Não é à toa que o conto de Jorge Luis Borges, de onde saiu a intertextualidade de Saramago, tem o título de “Exame da Obra de Herbert Quain”. Trata-se de um ensaio crítico. São espelhos que se replicam em forma criativa. De forma irônica o tema da complexidade estética da obra de arte é colocado em pauta no conto, em que são citados Flaubert, Henry James e Shakespeare. Ironia maior é o crítico e Herbert Quain não concordarem que essa seja a essência da obra de arte, eles defendem a simplicidade do comum. A ironia se torna mais sintomática quando os dois concordam, também, que o fato estético não pode prescindir de algum elemento do assombro. Eis a provocação de dois artistas excepcionais, que não tinham a menor condescendência com a ignorância artística dos seus possíveis leitores.

De fato, que a ignorância se exploda!

quinta-feira, 30 de julho de 2009



Macaco Bong
Instrumental sem macacada

Uma surpresa boa sempre rola bem. Quem me apresentou o som do Macaco Bong foi Manoel Barros, velho amigo de inúmeras viagens sonoras, transubstanciadas no velho Cariri cearense, com os pés sempre alocados no universal. Combatemos juntos na trincheira cultural dos sebos, eu com o Et Cetera e ele com o Alan Poe. Ele resiste firme com o Solaris, reduto de cultura e bons tempos. Sempre nos encontramos e falamos sobre música e a mercadoria sonora, essa puta velha, cheia de truques e manhas seculares. O Macaco apareceu no último encontro.

O Power trio cuiabano surpreende de várias formas. É rock instrumental, mas não é pirotecnia guitarrística esclerosada dos fritadores de plantão. É independente, mas não tem parentesco nenhum com a merdologia indie que assola os universos paralelos e alternativos. É fora do eixo sul-sudeste, mas não tem a pretensão de resgatar porra nenhuma da cultura popular. Além disso, não cabe em nenhum rótulo ou tags existentes na falida imprensa especializada. Macaco Bong é rock instrumental sem macacadas e sem a sombra sorumbática da virtuose. O que já é muita coisa.

A banda já foi um quarteto e já lançou dois Eps. Macaco Bong nasceu em 2004, em Cuiabá (MT). Recentemente a banda lançou o seu primeiro cd “Artista Igual Pedreiro”, que faz parte do excelente projeto do selo Trama: Álbum Virtual da Trama, em que você tem disponibilizado trabalhos integrais de artistas com downloud grátis, inclusive com direito a capa, fotos e extras. São iniciativas como essas que mantêm arestas para a verdadeira música respirar livremente, em meio ao intenso mercado escravo dos jabás. Eis o endereço da redenção: http://www.tramavirtual.com.br/. O endereço específico da banda Macaco Bong é : http://www.tramavirtual.com.br/macaco_bong.

Atualmente a banda é integrada por Bruno Kayapy (guitarra), Ynaiã Benthroldo (batera) e Ney Hugo (baixo). O som que essa garotada faz é uma mistura de rock, jazz, psicodelia, hardcore, noise, hard e pop. As dez faixas do disco apresentam uma verdadeira parede sonora, com texturas modais, mudanças de andamento, ruídos, climas, dinâmicas e tensões sonoras da mais fina origem da vagabundagem musical do rock’n’roll. Os timbres mudam, mas não com tanta freqüência. Praticamente não existem solos, só em duas músicas: “Bananas For you all” e “Compasso em ferrovia”. O som do Macaco Bong é para quem não se preocupa em encontrar a peça mais intelectualizada ou a composição mais fodona do universo.

Os destaques ficam por conta da magnífica “Fuck you lady”, com belas passagens acústicas e climas em oitavas de muita inspiração. A super densa, dissonante e psicodélica “Noise James”, com uma pegada de peso, com uma guitarra saturada na válvula e mudanças de timbres sutis. A super climática, com belo tema em oitavas e timbre de guitarra praticamente limpo, “Bananas For You All”, com direito a um solo econômico, com texturas de delay e chorus. E a mais surpreendente de todas, “Compasso em Ferrovia”, climática, meio jazz-rock, com solo modal e um sustain de guitarra infinito, que prenuncia uma parede experimental de ruído e tensão.



Macaco Bong é a prova de que nem tudo está perdido na cena rockeira brasileira. Se por um lado o rock brasileiro vive do pastiche comercial de bandas como NXZero e outras porcarias do gênero, por outro lado o caminho indie é repleto de porcarias que imitam outras porcarias gringas. Mas existe um caminho do meio, bem ao estilo Macaco Bong, capaz de proporcionar prazeres inimagináveis, com ou sem trocadilho.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

O rodopio aperreado

Foi quando
Apareceram os espectros
E a multiplicação dos miasmas
Pelas cercanias guardadas
Por Deus e pela sua própria
Versão irada em risadas áridas
No seu favor está a vida
A sua ira dura só um momento
O choro pode durar uma noite
A alegria vem pela manhã
Assim se espera que
As esporas sejam esporádicas
E as lágrimas magmáticas

E riram
Descontroladamente
Todos os loucos
E copularam histéricos
Todos os infindáveis reclusos
E todos os inocentes apascentaram
Todos os incautos trêmulos
E todo o mijo foi vertido
Diante do imensamente inseguro
E estava todo o instável
Assim se vocifera que
As esmolas sejam imoladas
E as perdas perdoadas

Solano
Aquele dos dentes de ouro
Foi visto sorrindo para a morte
Mas ela não viu riqueza ali
Ele passou a morder o
Próprio desespero cadavérico
Joana das Trevas teve os seus peitos
Repartidos por sete desejos esganiçados
Teobaldo da Catingueira matou
Vivos e mortos sem qualquer piedade
Assim se considera que
As contas sejam recontadas
E as preces apreciadas

Pouquidão
Não é um mero nome
Pendiam de todos os lábios
Todas as palavras pronunciáveis e
Todas elas eram surdas mais que mudas
E toda sorte de cacarecos ali fora
Espalhada e nada foi juntado
E tudo se somava para diminuir
Justamente quando se mais ia
Mais se voltava em voltas
Assim se pondera que
As pragas sejam propagadas
E as dores adoradas

Farelentos
Os fazedores de estradas
Se foram daqui sem qualquer
Pernoite de angústias em hóstias
E se foram a sós tangendo todos os tatus
E todas as saídas ficaram em saias
Deixando para os sorrisos maternos
Como hímens aritméticos
O esguio máximo que há em um
Apurado de leite em pó
Assim se pondera que
Os peitos sejam respeitados
E os partos repartidos

Martiniano
Aquele das sementes sangradas
Furou seus furúnculos com
Filetes de balas perdidas
E de imediato cresceu ao seu redor
Um pântano de alucinações
Dídimo Sem Piedade contou
Com todos os seus dedos
E até o quanto pôde os dísticos
Que circulam uma maldição
Assim se pondera que
Os fardos sejam fardados
E os nomes nomeados

Imensidão
Foi o que Salete Sozinha viu
Ao olhar para o céu sem astúcia
E pedir ao Supremo o controle
Sobre os próprios dentes
Para que suas palavras de repúdio
Não tivessem sílabas amputadas
Já Eva de Tudor não pôde impedir
Que os gritos de sua prole se evadissem
Tomando rumos ignorados
Assim se pondera que
Os signos sejam signatários
E os ditos editados

Então vieram
Uma a uma e depois aos montes
As descendências túmidas
E de prontamente vieram me chutar
Não estranhei nada
Nem os olhos vermelhos
E assim as fizeram como assim
Eu bem sei que essas pedras
E essas lenhas todas são minhas e
Em fogo querem me pertencer
Assim se pondera que
Os fatos sejam fatiados
E os exércitos exercitados

E eu
Que já te vi nua
E agora envolta em névoa
E agora me enervando
Com tantos nomes e tantos retalhos
E tanto e tanto estraçalhar
Agora se me ergue em vapor de um
Vulcão voraz a estripar até vozes
A me dizer em zeros e vírgulas
Que não existe vazio sem vórtices
Assim se pondera que
As marcas sejam demarcadas
E as cóleras encoleiradas

E esse
Choro cheio de estiagens
Que eu vi refundar o despedaçar
É também por ti Eponina
Ele corre sem escorrer
Evacuado em vapores decimais
Assim eu procurei em vão
Por todos os sentidos
E todos eles se estilhaçaram
Por todos os desvãos
Assim se pondera que
As forças sejam reforçadas
E as farpas esfarrapadas

E partiram
Aqueles que foram destinados
E os deslocados revelaram as
Apostasias dos apóstolos
Eram trinta e dois os debruçados
E mais de cem incrustados
No vento em posição de feto
Eram setenta e três as orações
Cuspidas em línguas mortas
E só um o desespero maior
Assim se pondera que
Os sinos sejam assinados
E os amparos reparados

Foi quando
Eu vi Anunciada descendo
Pelas escadas flutuantes
Com trezentas entidades enrugadas
Seguras pelas goelas
Do cemitério recuado brotaram
Arcanjos sob uma árvore frondosa
Assim o cruzeiro primordial
Foi lavado com larva
Em divina dádiva atávica
Assim se pondera que
Os atentos sejam atentados
E as provas provocadas

Sem povo
O povoado era um ovo
Sem ovários irrevogáveis
O rio silencioso agora é um
Charco imóvel embebido em
Memórias remuneradas
Um peixe azul voa entre as
Borboletas sutis anunciando assim
Um narrador multiplicado
Para as divisões da história
Assim se pondera que
Os cursos sejam discursos
E os desertos desertados

sábado, 27 de junho de 2009










O Modernismo sob a ótica
De Peter Gay

Mais uma vez a editora paulista Companhia das Letras é responsável pela publicação de uma verdadeira obra de arte contemporânea, através da completa acepção da palavra pertinência. Agora a editora celebra a cultura em um calhamaço de 578 páginas sobre a origem e expansão do Modernismo, escritas pela competência e erudição do respeitadíssimo historiador alemão Peter Gay, autor de obras consagradas como “O Estilo na História” e “Freud: uma vida para o nosso tempo”.

“Modernismo – O Fascínio da heresia - de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” é o extenso título desse livro urgente para aqueles que vivem de aparências, imprescindível para aqueles que necessitam de uma alimentação saudável e fundamental para quem tem sua parcela de culpa, direta ou indireta, em nosso quadro universal do fracasso escolar, terra em que a pilantragem é matéria farta para teses de doutorado e o exibicionismo de títulos é a legitimação da mediocridade indelével. Nessa obra basilar, Peter Gay despiu a linguagem da cosmética teórica e assumiu corajosamente suas particularidades e preferências.

Dos incontáveis códices estéticos que servem “cientificamente” para fundamentar o arcabouço artístico do Modernismo, Peter Gay se utiliza, de forma minimalista, praticamente de dois axiomas: a heresia estética – como ele chama a transgressão aos cânones artísticos estabelecidos desde o período clássico até a famigerada era vitoriana – e o intenso mergulho psicológico da abordagem da existência do ser e do estar, em que pesem aí a descontinuidade do discurso e a fragmentação da realidade. Para tanto, o autor desvenda com muita habilidade e proficiência, como a história forneceu os motivos e os elementos que proporcionaram uma mudança tão radical, que foi o Modernismo, na forma de conceber, produzir e vender a arte.

“Modernismo – O Fascínio da heresia - de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” é um magistral compêndio histórico de segmentos artísticos, de autores e de obras que perfazem a práxis modernista, abarcando de uma só vez literatura, teatro, artes plásticas, música, balé, cinema e arquitetura. Mesmo sem a pretensão de ser uma história social do Modernismo, Peter Gay não deixa de aprofundar as implicações da história, das ciências, da política e da economia, com todos os seus desdobramentos no cotidiano das relações sociais, na formação do paradigma modernista.

O que isso significa, bem como o que isso sugere, o leitor descobre através de uma leitura extremamente agradável e prontamente alertada para outras abordagens complementares, afinal de contas são galáxias complexas para caberem totalmente em um universo de apenas 578 páginas. Já na tomada inicial, quando o autor estabelece a presença de Charles Baudelaire como uma das pedras fundamentais nessa guinada estética, o leitor mais atento sente que um detalhamento do ambiente da segunda revolução francesa, de 1848, fornecerá muito mais subsídios para a aceitação da importância toda do maldito das flores do mal. Nesse caso, se o leitor tiver em mãos o livro “O Velho Mundo Desce aos Infernos”, de Dolf Oehler, também da Companhia das Letras, a festa será repleta de transversais.

A erudição e o refinamento das idéias de Peter Gay nos remetem diretamente à leitura de outros livros cheios de contigüidade tais como “A Emoção e a Regra”, com organização de Domenico de Masi, da editora José Olympio, que aborda os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950 e atesta para o leitor que o paradigma modernista nãos se restringiu apenas a arte; e “Pós-Modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio”, de Fredric Jameson, da editora Ática, que mostra para o leitor os desdobramentos culturais, políticos e econômicos que vieram depois do Modernismo. A leitura desses outros livros não indica uma deficiência no livro de Peter Gay, muito pelo contrário, comprovam a envergadura e complexidade dessa obra magnífica.

Seria enfadonho esboçar aqui uma lista de autores e obras, bem como de tendências e peculiaridades expostas por Peter Gay ao longo de sua obra. É bem mais profícuo afirmar que até o mais perdulário dos imbecilóides reacionários, após a leitura desse livro, retirará das suas fuças o ar de parvo e a atitude de beócio diante de um quadro de Kandinsky ou de uma composição de Varèse. Mas se o incauto leitor não souber quem é nenhum dos dois nomes citados é melhor continuar acreditando que questão de gosto não se discute.

Munido de um conhecimento espetacular Peter Gay esmiúça com seu escafandro intelectual como o ódio à burguesia tornou-se um dos instrumentos que solaparam os quadrantes da estética conservadora rumo aos caminhos tortuosos e abismados da arte pela arte, até chegar ao litígio completo com o senso comum, passando pelo viés anarquista do desconstrucionismo das vanguardas, traduzido dramaticamente pela negação da própria arte em obras desconcertantes, como as sátiras prolíferas de um Marcel Duchamp, por exemplo.

Vale ressaltar que uma obra com uma temática dessa desnatureza jamais fugiria da polêmica. Sendo assim, a obscuridade e o enigma, que são próprios do desfazer modernista, se apresentam na obra de Peter Gay justamente através de algumas ausências inesperadas. É paradoxal atribuir uma importância descomunal à poesia de T. S. Eliot, sem fazer nenhuma menção à genialidade poética de Ezra Pound, o verdadeiro mestre do Modernismo e do próprio T. S. Eliot, ou até mesmo nenhuma referência às vertigens abissais de Fernando Pessoa.

Também é surpreendente como o autor alemão detalha o atonalismo musical até Schoenberg, passando por John Cage, sem abranger o concretismo eletrônico de Karlheinz Stockhausen. Outras tangências irremediáveis dizem respeito a nenhuma citação de Jorge Luís Borges e José Saramago, quando Peter Gay constrói uma cádetra justa a outro mestre do Realismo Fantástico, que é Gabriel Garcia Marques. Mas isso é o de menos. O saldo é muito mais superior em informações do que em formações, o que torna essa obra um verdadeiro antídoto à picaretagem, à ignorância e ao achismo provinciano.

quarta-feira, 3 de junho de 2009

A dama de ferro

Só minhas
De fato abortaria eu
As muralhas da China
Se outrora apetecido estivesse
De tê-las parido em paralelo

E cagaria velhas fotografias
Enredadas de novos conflitos
Se houvera um dia ter saboreado
A docilidade calculista da vitória

Mas não estão os mortos
Aqui em suas contraproducências
Amplamente duvidadas
Como dívidas indevidas

Ao longo dos meus fatos
Pontiagudos em amarguras
Corre um rio fantasma
Ausente de si e de ser e estar

São nessas águas
Molhadas pelo aparente vazio
Que se banha o meu deus falido
Livre das torturas que agora são
Só minhas
Três e trinta e três p.m.

Isso não é um cachimbo
Mas há sem dúvidas
Um vendaval sob
A chuva ácida que cai
Sobre Bombaim

É ela mesma que
À distância sabota os
Seus órgãos internos
Para alimentar o ansioso
Mercado negro

É preferível que nesse
Carrinho de compras virtual
Você não coloque
A orelha de Van Gogh
Como absorvente

E nem bote
Feito serpente
O fêmur de James Ensor
Como um impávido
Estimulador clitorial

É preponderante
Que depois de gozar
Com um vibrador
Desenhado em Paris
E fabricado em Pequim

Que você mije com o
Frescor da menstruação
Sobre a última grade
Abstraída da última
Úlcera de Mondrian

Deixe secar ao sol
Com o passar do tempo
Você sentirá o prazer
Do ócio orientado ocidental
De entrega em domicílio


Caetano Veloso em Juazeiro do Norte
A sagração da iconoclastia

O dia 30 de maio de 2009 entrou carnavalescamente pela porta dos fundos da história cultural da tribo Cariri. Uma das cenas mais grotescas já encenadas no teatro rabelístico caririense anunciou a premência do burlesco: quando Caetano Veloso entrou no Palco da Aplausos, encontrou uma platéia com mil e uma cadeiras de plásticos na cabeça. Estava fundada, pois, naquela noite sem devolução, a versão da inversão.

Além da alegórica transferência localizada da bunda e do assento, Caetano Veloso inverteu muito mais, colocou no lugar da província o universal; a arte no lugar da desarticulação; no lugar da idolatria a iconoclastia; o ontológico no lugar da antologia; no lugar do envolvido ele colocou o evoluído, que trouxe consigo o futuro para uma imensa parte daquela gente presa ao passado mumificado. Assim a chuva demonizada em forma líquida, indesejada pelas pranchinhas e pelo brilho fácil das jóias folheadas, veio em forma de uma inesperada inundação estética civilizatória, provinda de uma banda pós-moderna e de um artista atemporal.

Quem foi para o show esperando encontrar um Caetano milagreiro, capaz de reacomodar o que já estava acomodado nos recônditos miseráveis dos barzinhos de ponta de rua, encontrou um Veloso exorcista, capaz de reduzir a migalhas os seus demônios cultivados e os demônios incultos, possuidores de boa parte da platéia, que confundiu espetáculo musical com evento social e ingresso com convite para a proclamação da inutilidade da primavera no baile do Lions Club, só faltaram as doações generosas de alimentos não perecíveis para as vítimas – coitadas - das cheias, elas mesmas.

Caetano Veloso estava e sempre esteve íntegro artisticamente. Com um repertório impecável para quem o concebe livre para criar e um repertório imperdoável para quem o conserva cativo para lembrar, Caetano cantou, dançou e profanou a sagração dos medíocres. A maioria das músicas do repertório do show está no disco novo “Zii e Zie”. A parte menor das músicas do repertório, e nem por isso minúscula, faz parte do período do exílio do compositor e de outras fases de sua carreira extensa e internacional, com mais de quarenta discos de inéditas lançados no mercado interno e externo.

Mais pitoresco do que os guarda-chuvas na platéia, que lembraram as arquibancadas do Romeirão em dia de Icasa e Guarani, foram as reações dos “emergentes”, imbecilizados pela falta de civilidade e enfeitados pelo excesso de penduricalhos inócuos, ao vaiarem e apuparem Caetano Veloso com expressões como bicha e outras idiotices, a cada música nova apresentada. Enquanto isso, do outro lado, no avesso desse universo de baixarias, outra parte do público se deliciava com aquela chuva fina, sutil e translúcida de talento, competência, profissionalismo, estética contemporânea e arte, que Caetano Veloso e a Banda Cê, fizeram cair sobre a Aplausos, para lavar de uma vez por todas o lixo cultural que ainda teimava em ecoar entre aquelas paredes.

Mas essa postura com requinte de camelódromo e de cobrador de van, apresentada por uma boa parte da platéia de grife, é mais do que compreensível e lamentável, pois quem tem sido educado intensamente pela filosofia de cabaré e álcool dos Aviões do Forró, Solteirões do Forró e outras macacadas do forró, não poderia jamais reagir positivamente à poesia de vanguarda de Caetano Veloso, principalmente em uma roupagem tão refinada e alternativa proporcionada pelo trio Pedro Sá, Marcelo Callado e Ricardo Dias Gomes, respectivamente, guitarra e baixo, bateria, piano e baixo. Seria tão impossível quanto esperar de um vendedor de discos piratas da São Pedro uma conceituação sobre o dodecafonismo de Schoemberg. Não é à toa que ele foi vaiado em Fortaleza também, pois filha de peixe piranha é.

Caetano Veloso se renova a cada ano e se distancia a cada ano do grosso de sua antiga platéia dos anos 60, 70 e início dos 80. A maioria nunca ouviu falar em Artic Monkeys, Pixies, Sofa Surfers ou Cidadão Instigado. Bem antes do disco Cê, de 2006, que Pedro Sá é o escudeiro de Caetano Veloso. Com ele veio a pegada mais roqueira, mais dissonante, mais distorcida e mais experimental. Mas experimentalismo não é novidade para quem protagonizou o Tropicalismo e lançou discos como Araçá Azul e Jóia. Dessa vez, em lugar do concretismo na poesia e da estética hippie na música, está o existencialismo político e o minimalismo dissonante, que Pedro Sá trouxe como herança da banda carioca “As Mulheres que só dizem sim”.

Ver e ouvir Caetano Veloso em plena criatividade foi ter certeza que ele é, sem dúvidas, um dos mais importantes artistas brasileiros de todos os tempos, não só pelo serviço prestado, mas também pela continuidade de um caminho completamente alheio ao óbvio e ao pastiche. O que se viu no palco da Aplausos foi um artista vivo, atuante, diametralmente oposto ao conformismo, livre do exibicionismo, do virtuosismo e do formato comercial. A partir da perspectiva imobilizada dos museus e afins, bem como do asseio anômalo dos entrepostos de verduras e contrabandos do Paraguai, nada mais natural do que boa parte da platéia não ter entendido nada, inclusive a dedicatória de duas músicas em memória de Augusto Boal.

terça-feira, 12 de maio de 2009



Orquestra Imperial
Nem tudo o que balança é swing


O mercado fonográfico brasileiro é muito peculiar, às vezes brinca amadoristicamente de ser profissional e outras profissionalmente leva a sério ser amador. Esse é o caso da numerosa banda Cult Orquestra Imperial, que tem um magote de músicos da cena carioca, que nasceu com o intuito de “resgatar” a verdadeira essência cultural da gafieira e adjacências, mas que não passa de uma banda extrapolada demograficamente, que resolveu compor o seu próprio material, saindo do barzinho sem o barzinho sair dela.


Ao vivo e tocando o repertório dos outros essa banda é perfeita e com pouquíssimas cenas de canastrice musical. Em estúdio e tocando o próprio repertório a banda parece encenar um decadente teatro de revista, sem pique e sem a menor criatividade e isso é o que mais surpreende do que espanta, tendo como referência os inúmeros talentos envolvidos no projeto, que de início parecia despretensioso e que gora resolve entrar para o campo autoral. O disco “Carnaval só ano que vem”, é bem gravado, bem executado, mas é morno, extremamente morno. Sendo que em alguns momentos o disco se torna radicalmente careta.


A escolha da faixa de abertura, “O mar e o ar”, não poderia ter sido pior, com o desafinado Rodrigo Amarante cantando um samba canção sem a menor convicção de que um cantor não vive sem ser um ator musical. O xilofone e a guitarra havaiana ainda tentam dar um ar mágico às coisas do mar, sem que as ondas sirvam para surfar. A faixa dois, “Não foi em vão”, é um samba com um dos arranjos mais quadrados de metais da música popular brasileira, tão careta que chega a dar saudade de Lincon Olivetti. A faixa seguinte, “Ereção”, celebra o ambiente sensual dos bailes de gafieira e trata da ereção, tão comum nas danças coladas. A mídia amiga afirma que esse é o lado bem humorado da banda, mas que na realidade é a baba do babaca.


A faixa “Jardim de Alah” é um lenga lenga sem fim, é o jeito Rodrigo Amarante de cantar fazendo escola. A caretice dos metais prossegue em rota épica, ganhando os mares e os bares, com ar de fim de festa. A faixa seguinte, “Rui de mes souvenirs”, é uma espécie de bolero-bossa-samba cantado em francês, pense numa porcaria que não deveria ter entrado no repertório nem como faixa bônus. A saga dos metais argonautas continua, com notas alongadas e naufrágios aprofundados. A Orquestra tem inúmeros cantores e colocam logo Rodrigo Amarante para cantar uma rumba, que acabou transformando a música, “Yarusha Djaruba”, em um sonrisal dissolvido em uma cuba-libre, com rum do Paraguai.


A faixa seguinte, “Era bom”, é um sambão quadrado, pé-duro, guarda roupa de quitinete, com direito a todos os laraialás possíveis e imagináveis, bem como uma letra que mistura metalinguagem sobre as próprias raízes sambistas e sexo de quinta categoria. Os metais continuam reféns de arranjos dignos de Roberto Carlos se apresentado em um cassino do Panamá. A outra faixa, “Salamaleque”, é outro sambão quadrado, pé-duro, guarda roupa de quitinete, com direito à rima esperta de pileque com salamaleque, essa é dose de fubuia de renovação. Mas em se falando em letra tenebrosa, nada supera a poética ginasial de “Ela rebola”: “Ela rebola pra lá / ela rebola pra cá / mas pra mim bola ela não dá / ela rebola pra cá / ela rebola pra lá / mas bola pra mim eu sei que ela lalalah...” Essa babaquice monumental é de autoria de Jorge Mautner, que participa da última faixa do disco.


O disco se encaminha para o final com, “De um amor em paz”, outra música que deveria ter ficado de fora do repertório, outro lenga lenga sobre o amor, com os metais enchendo o saco com um arranjo de sinfonia para velório. Nina Becker não cante essa música mais nunca, pelo amor aos seus fãs. Só na última faixa, “Supermercado do amor”, é que a verdadeira Orquestra Imperial dá as caras, mas aí já é tarde e o baile está acabando e só resta pegar duas conduções de volta para casa, arrependido.


Provável formação:


THALMA DE FREITAS (voz) - NINA BECKER (voz) - MORENO VELOSO (percussão e voz) - RODRIGO AMARANTE (voz) - WILSON DAS NEVES (voz e percussões) - NELSON JACOBINA (guitarra e violão) - BARTOLO (guitarra) - PEDRO SÁ (guitarra) - RUBINHO JACOBINA (teclado) - BERNA CEPPAS (sintetizadores e percussão) & KASSIN (baixo) -.DOMENICO LACELOTTI (bateria) - STEPHANE SAN JUAN (percussão) - BODÃO (percussão) -.LEO MONTEIRO (percussão eletrônica) - FELIPE PINAUD (flauta) - MAX SETTE (trompete e flugelhorn) - BIDU CORDEIRO (trombone) - MAURO ZACHARIAS (trombonista)

segunda-feira, 11 de maio de 2009



Little Joy
Sonífero para cavalo


Através das esquinas que norteiam o chamado rock alternativo brasileiro é possível perceber que o pastiche e o simulacro dominam o que praticamente já nasceu dominado, com raríssimas exceções. Além da falta de originalidade e de talento, o que pesa ainda mais é a cara de pau de posar para imprensa como novidade. Esse é o caso do embrulho no estômago chamado Little Joy, liderado por Rodrigo Amarante, ex-Los Hermanos e Fabrizio Moretti, do The Strokes, que já nasceu possuído, com cara de ressaca e com o barulho de moedas velhas no bolso da calça.


Desde o último (?) lançamento do Jumbo Electro e de outras porcarias do gênero, eu não tinha escutado um disco tão ruim. Até parece que faz parte da estética indie não saber cantar e não saber tocar porra nenhuma. Mas a imprensa especializada em mercado adora esse ar blasé, essa melancolia de corno de balcão de bodega, essa sonolência de lombra de chá de zabumba, esse cheiro constante de merda sonora. O disco do Little Joy reinaugura a estética do entulho: só ocupa espaço e não serve para nada, nem mesmo para promoção dos dias dos namorados arrependidos de ter transformado um fica num problema.


Mas o último disco de estúdio dos Los Hermanos já anunciava o cansaço, o marasmo, a falta de criatividade da dupla de compositores da banda. É tanto que a ele se seguiram o horripilante ululante “Nós”, de Marcelo Camelo, e depois esse glorioso barbeador enferrujado, prostrado na margem direita do rio Tietê, que atende pelo singelo nome Little Joy (um trocadilho para pequeno prazer) engendrado nas entranhas da frieira mais macabra do dedo mínimo do pé esquerdo de Rodrigo Amarante e Fabrizio Moretti. Sem que a ficha tenha dado o ar da graça, eles, ainda como Los Hermanos, lançaram o pastelão da impostura, ao vivo, na Fundição Progresso.


O disco abre até com vontade de enganar o mais incauto dos desconfiados com a faixa “The next time around”, uma balada indecisa em ir para frente ou ir para trás, embalada com uma das letras mais babacas do disco. O clima retrô permanece na segunda faixa, “Brand new start”, uma das poucas que se salvam nessa inesquecível ruma de músicas ruins. “Play the part”, terceira faixa do disco, se supera em todos os sentidos: mal cantada, mal arranjada, mal tocada, melodia ridícula, letra imbecil, e o vocal de fundo... bem, o vocal de fundo é trágico, sem conseguir nenhuma raspa de comicidade. Essa faixa é só para quem segura o ovo esquerdo de Rodrigo e vigia o direito. Ruim é pouco.


“No ones better sake” é a única faixa que presta de verdade e tem uma pegada mais parecida com alguma coisa, mas nada que possa salvar a bruxinha se afogando. Logo em seguida o travesseiro definitivo é servido, uma obra prima de mediocridade. O famigerado vocal de fundo reaparece em “Unattainable”, cantada por Binki Shapiro, através da verdadeira fórmula do diazepan, e se prolonga em forma de anestesia para elefante na faixa seguinte, “Shoulder to shoulder”, que tem o solo de guitarra mais cretino do disco, e “With strangers”, que tenta parecer o lado imóvel do Los Hermanos. Aliás, dizer que existe alguma coisa musical nesse disco é muita generosidade. Little Joy é realmente pequeno e sem significado ou significante.


Já estamos na faixa oito do disco, “Keep me in mind”, e a cretinice se instala de vez. Essa faixa é um pastiche desacelerado dos Strokes, que vexame, que mico, justamente para quem já participou diretamente de dois dos maiores discos da história do rock brasileiro: “Bloco do eu sozinho” e “Ventura”. Não vou nem comentar a presença do músico Moretti, por que de fato ela não aconteceu, ainda mais com esse timbre ridículo de caixa e bumbo. Acho até que ele deveria ter arranjado algum tempo no Brazil e feito um curso intensivo com Pantico ou Pupilo.


Mas o pastiche continua na faixa seguinte, “How to hang a warhol”, em que parece que Juliann Casablancas, vocalista e líder dos Strokes, depois de tomar trezentas caipirinhas nos cabarés da Lapa, resolve dar uma canja.Binki Shapiro, namorada de Fabrizio e modelo profissional volta a atacar em, “Don`t watch me dancing”. Ao longo dessa cansativa audição, não sei se a banda tenta parecer Cat Power ou Cowboy Junkies, mas see que ela não conseguiu um mínimo de legitimidade. No entanto o tratamento mais radical contra a insônia só termina onze faixas depois, com “Evaporar”, um letárgico Rodrigo Amarante desfiando uma pífia filosofia sobre o tempo, que só faz reafirmar a certeza de que o primeiro disco do Little Joy é uma verdadeira perda de.


Eis os responsáveis:


Fab Moretti – guitarra / vocais
Binki Shapiro – vocais / teclados
Rodrigo Amarante – vocais / guitarra / teclados
Todd Dahlhoff - baixo
Noah Georgeson – guitarra / teclados

domingo, 10 de maio de 2009

Quinze minutos e não mais

Há um utilitarista
Dentro do capuz azul
Dentro do cu da codorniz
Doido pra fazer um
Fundamentalista feliz

Que importa
Se a lista é longa
E se os produtos permanecem
Imóveis na prateleira à espera
Do irrevogável John Stuart Mill

Que importa
Se o impostor se masturba
Olhando para a camponesa
Do rótulo vermelho
Da lata de manteiga

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Alguns segundos antes

Agora o que possuo
É esse dia trinta e três
Olho com meus dedos
Essa antinomia falida
Sinto o cheiro corcunda
Do cafezinho que foi
Servido a toda a escória
Aquela mesma que tem
Roubado a minha alma

Meus apelos já não são
Mais sinceros como antes
A padaria em que eu
Hipotequei minhas vísceras
Virou um estacionamento
Olho para minhas pernas
Ainda trêmulas e sinto
Que Maiakovski nunca
Foi um canalha como eu

Agora o que possuo
É da corja da esquina
Também pudera a corja
Toda me pertence inteira
Estão lá perambulando meus
Desejos embalsamados
E meu prazer infinito de
Ser chicoteado até o sangue
Pela balconista zarolha
Os famosos quinze minutos

Não conheço
A teogonia defendida
Pelos mulçumanos
Muito menos vejo
Percevejos na barba culpada
Atribuída aos judeus
Na crucificação de Jesus
Nem sei do sangue
Escorrido em Constantinopla
Pouco me importa também
Se Napoleão cagava de cócoras
Suas mágoas na ilha de Elba
Ou se o parvo D. João VI
Babava gordura pelo
Canto da boca após devorar
Cinco frangos de uma vez

A única história
Que me interessa de fato
É documentar com
Meus olhos de cafajeste
Belarmina armada até os dentes
Com um velho barbeador bic
Depilar sua linda vulva
E se cortar pelo menos
Por três vezes
E quando ela afasta
O lábio esquerdo ainda mudo
E passa a lâmina rente
Á varize encravada
Na reentrância da perna
Eu tenho a imperdoável certeza
Que já não me pertenço mais
Uma e um

Bem no coração da cidade
Existe um ferro velho
Carcomido pela esperança
De dias melhores
Lá as carcaças enferrujadas
Sonham com velocidades amenas

Bem no coração de Sebastião
Quando posto ele entre dentes
Um gosto de aço urdido
Aflora sem nenhum polimento
Quando ele imagina estuprar a irmã
Dentro do fusca esmaecido

segunda-feira, 20 de abril de 2009






Estômago
Um filme para quem tem fome de arte

As locadoras acabaram de receber a versão para DVD de uma das mais elaboradas películas do cinema nacional. “Estômago” não funda nenhum movimento, não trai nenhum movimento, não desconstrói nada, não apresenta nenhuma alternativa nova para o mercado Cult, é sem mirabolâncias ou invencionices iridescentes, apenas resgata a narratividade do cinema. E é justamente aí que reside a genialidade dessa verdadeira obra de arte.

Longe da merdologia global, do engajamento social, das soluções cretinas dos efeitos especiais, bem como do pseudo historicismo panfletário que povoam os editais públicos e privados do país da corrupção, “Estômago” nasce como o recrudescimento da verdadeira arte cinematográfica brasileira, sem se quedar ao provinciano ranço fáustico do: “tem que ser mambembe para ser genuinamente brasileiro”.

Essa é uma produção bi-nacional, brasileira e italiana, um canal oficial de cooperação tecno-artística pouco utilizada pelos produtores brasleiros. É uma realização das produtoras Zencrane e Indiana, brasileira e italiana, respectivamente. O filme tem a excelente direção de Marcos Jorge, que estréia em grande estilo, construindo uma carreira premiada, reconhecida pela sua capacitação profissional e pela sua legitimação artística.

“Estômago” nasceu de um conto de Lucas Silvestre, roteirista, e narra a saga epifânica de Raimundo Nonato, existencialmente transformado em Alecrim. O enredo é magistralmente bem modelado em sua simplicidade e magnificamente complexo em sua alegoria crítica da decadência dos valores universais. “Estômago” não nega as suas filiações felinianas e do Realismo italiano como um todo, mas não se apropria indebitamente de nenhuma estética.

Apesar de transitar pelos conceitos e limitações do Neo-Ralismo e do Neo-naturalismo, a direção e o roteiro fornecem identidade ao filme. A breve epopéia de Raimundo Nonato é engrandecida ainda mais pela espetacular atuação de João Miguel, o mesmo que estrelou “Cinema, aspirinas e urubus”, “O céu de Suely” e “Mutum”, entre outros. Com a presença grandiosa de Fabíola Nascimento, no papel da prostituta Íria, o enredo navega em sua semiologia do desejo humano.

Não espere um filme sobre receitas e pratos delicados. A ironia corrosiva do enredo extrapola, projeta para além do amor e da morte a trajetória trágica desse anti-herói brasileiro. A épica de Raimundo Nonato é contada em dois momentos, que se completam e se desdobram. Mas a metáfora do alimento que saciará a fome dos desejos, não é só dele, é nossa também. O canibalismo de Raimundo é a própria transmutação selvagem da libido pós-moderna, que fornece instrumentos e aparelhamentos para a sofisticação da nossa decadência mais profunda.

O enredo de “Estômago” é tão bem arquitetado que eu corro o risco de quebrar o grande barato de assisti-lo. Mas vale a pena aqui ressaltar que é através da culinária que Raimundo Nonato cria o seu decadente reduto de poder. Ele percorre os ritos de passagens em que o transformam em Alecrim com a suprema ironia do encanto e desencanto. O crescendo da trama é cheio de implicações interpretativas, que vão da sutileza da combinação das cores do ambiente e do figurino até a carga dramática reveladora da mais animalesca natureza humana.

É muito gratificante perceber como ainda é possível utilizar a arte para criticar a bestialidade humana. A comida aqui é a alegoria da usinagem humana que transforma a sagração da existência em excremento. Não é aleatório o fato de “Estômago” começar com um close na boca de Raimundo Nonato e terminar com outro close no seu traseiro. Aliás, nada é aleatório nessa obra de arte. Desde a trilha sonora do discípulo de Enio Morricone, Giovanni Venostra, passando pelos ambientes claustrofóbicos, até aos gestuais próprios dos nichos sociológicos apresentados, está perfeitamente interligado à epifania de Raimundo Nonato.

Algumas cenas de “Estômago” já fazem parte da novíssima antologia da novíssima geração de cineastas brasileiros, que vieram como uma falange, espantar de uma vez por todas, a falta de técnica, a escassez de temáticas, e a inoperância estética de velhas figuras carimbadas do cinema nacional, que se tornaram órfãos da criatividade após as quedas da ditadura militar, do muro de Berlim e das torres gêmeas.

quarta-feira, 15 de abril de 2009


Patativa do Assaré - Ave Poesia
O dito pelo não dito


Patativa do Assaré já não se pertence mais, o materialismo histórico já providenciou o esvaziamento de sua propriedade. Até mesmo a obviedade canastrona das metáforas do homem pássaro e da poesia alada já perdeu o protocolo de posse e grilagem. Sobre o ícone histórico de um dos maiores poetas brasileiros paira uma solerte sombra de reforma agrária do seu legado poético, em que o aparelhamento de sua imagem e do seu prestígio atende aos mais diversos fins, como se a história fosse um pano de cozinha capaz de ser retorcido ao extremo. O documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry, é um exemplo desse processo de reificação do poeta.

Ao término da exibição do filme, a sensação que o espectador mais desavisado tem é que Patativa do Assaré só não fez parte da resistência armada contra a ditadura militar, em grupos como o MR-8, VPR ou VAR-Palmares, por puro capricho do destino, que em espetaculosa chantagem emocional existencialista o transformou em um poeta cantor do pathos das vítimas da exploração latifundiária e da escravidão capitalista, ainda reservando uma canonização heróica, dentro da mais pura utopia romântica revolucionária. Reduzir a esse patamar a vida e a obra de um dos mais profícuos poetas do século XX é tentar engarrafar mil rosários, trezentas enxadas, oitocentas rabecas e mais trinta mil chapéus de palha, em uma garrafa pet e vender como souvenir em um congresso de um partido populista de esquerda qualquer.

O cineasta Rosemberg Cariry não consegue ultrapassar as fronteiras amareladas do Cinema Novo e sua concepção nacionalista de que o homem novo surgiria messianicamente do seio do povo, das entranhas das raízes populares da cultura, o único portal cósmico capaz de formatar a verdadeira identidade brasileira. Essa postura ideológica de esquerda, às vezes festiva, de encontrar a legítima essência brasileira a partir de uma celebração inconteste das camadas populares e suas respectivas culturas foi fomentada e sedimentada principalmente nas fileiras dos Centros Populares de Cultura, do Partido Comunista, e da célebre Revista Civilização Brasileira, entre 1968 e 1978, através de artigos de autores da resistência intelectual como Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Ferreira Gullar, entre outros. A partir daí nasceram e cresceram as inúmeras diluições sectárias do herói brasileiro, ora com fundamentações marxistas-lenistas, ou maoístas, ou trotskistas, ou de outras vertentes mais incautas ou mais caricaturais.

Por um lado, algumas idiossincrasias chamam a atenção nesse documentário, às vezes pela ironia da própria história desapropriada, às vezes pela ironia apropriada pela própria história. De fato existe esse aspecto de crítica social na obra do maior poeta cearense, vivo ou morto, com ou sem recompensa. Não há como refutar isso. Mas também é fato que a trajetória literária e existencial do poeta é muito maior e muito mais diversificada, é um trem com diversos vagões e diversas estações, nem sempre concatenadas com esse ideário criado para ele, como uma aureola redentora. Dentro do contexto geral do documentário não dá para disfarçar, por exemplo, a dicotomia escatológica da imagem de Tarso Gereissatti e alguns outros políticos da mesma estirpe rodeando o caixão do poeta mitografado em seu velório.

Por outro lado, algumas imagens escolhidas do poeta são formidáveis, bem como algumas figurações são indeléveis. No que pese a força criativa de um poeta inspirado e desimpedido pelas amarras da totalização cultural, em que o produto vale muito mais do que o produtor, todas as recitações do poeta são marcadas pela legitimidade, pela honestidade e pela dignidade de um homem supremo em sua arte de analisar o mundo que o rodeia e o concebe. A poesia de Patativa do Assaré é bem maior do que uma cicatriz marcada por um regime político de exceção, não menos descomunal é sua simplicidade em cenas domésticas. Ele sim, em sua plenitude criativa e existencial, carrega em si uma dramaticidade repleta de vigor, capaz de emocionar até mesmo o mais anacrônico dos comunistas.

Ficha Técnica -Título Original: Patativa do Assaré - Ave Poesia Gênero: Documentário -Tempo de Duração: 84 minutos - Ano de Lançamento (Brasil): 2009 - Estúdio: Cariri Filmes / Iluminura Filmes - Distribuição: Direção: Rosemberg Cariry - Roteiro: Rosemberg Cariry - Produção: Petrus Cariry e Teta Maia - Música: Patativa do Assaré, Fagner, Fausto Nilo, Mário Mesquita, Ricardo Bezerra, Pingo de Fortaleza e irmãos Aniceto - Fotografia: Jackson Bantim, Ronaldo Nunes, Beto Bola, Kin, Rivelino Mourão, Luiz Carlos Salatiel e Fernando Garcia - Edição: Rosemberg Cariry

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Cinco e vinte

Os ônibus cobram
O ônus do ar com seus
Ânus de metal mundano
Recobrem com
Camadas sombrias
O ferro oxidado
Por asilos azedados
Onde as lágrimas
De Matilde respingam
Em esgrimas furtivas

A rua é imberbe
Nela nada cresce
Em forma de perdão
O trânsito trafica
Em segredo o sol
Apagado da solidão
Em um silêncio postergado
O velho portão perdeu
O domínio total
Das suas fronteiras

Matilde apenas olha
Fabrica soluços
E embala em lenços
Que transportam
Para sua alma o lixo
Cuidadosamente estocado
Em seus aposentos
Ela chora a ausência
Da sodomia do seu cão
Atropelado recentemente

sábado, 28 de fevereiro de 2009



“O amor é um cão dos diabos”
Charles Bukowski – Um fantasma urbano

Bukowski nunca morreu. Ele passou por um processo de destilação. Foi depurado. E também dependurado pela infâmia, enforcado como um indigente intelectual. Seus escritos cheiram a detergente de banheiro público. E como os velhos pombos que se revezam para cagarem na estátua do passado, ele não se esforça mais para reaparecer, alguém faz isso por ele. Afinal de contas, sempre alguém tem que fazer o serviço sujo, seja no sentido lato seja no sentido estrito.

Dessa vez foi a L&PM Editores, além de outros títulos desse poeta maldito, foi publicado em uma pequena tiragem “O amor é um cão dos diabos”, com tradução de Pedro Gonzaga, de 2007 e ainda não esgotada. O livro conserva em garrafas de vinho barato uma coletânea de poemas escritos entre 1974 e 1977. Neles o velho safado faz referências ao sexo pago, aos balcões de quinta categoria, às drogas, às bebedeiras, às corridas de cavalos e à onipotente decadência da sociedade americana como um todo. Entre um vômito e outro, uma puta e outra, não faltam referências metalingüísticas.

Bukowski nunca foi beat. Bukowski nunca ligou para a estética. A sua concepção de arte é uma luta de boxe, é uma corrida de cavalos, ganha quem apostar certo. Quem perder pegue suas coisas e caia fora, sem precisar lavar as mãos ou a bunda. Para imaginar o Senhor Buk recitando o seu poema cínico: “Como ser um grande escritor”, é preciso nublar a mente e entorpecer as pretensões ou faça como quem vai comprar uma dúzia de ovos para bebê-los na casca ainda manchada pela cloaca.

Assim os versos surgem como uma hemorragia de um pilantra esfaqueado em uma noite desiludida: “Arranje uma grande máquina de escrever / e assim como os passos que sobem e descem / do lado de fora de sua janela / bata na máquina / bata forte // faça disso um combate de pesos pesados // faça como um touro no primeiro ataque // e lembre dos velhos cães / que brigavam tão bem: / Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.” Essa verve tem a erupção repentina de um sexo reprimido por tanto tempo. Assim serpenteia na velha cidade decrépita a língua pagã do poeta degenerado.

Bukowski nunca foi honesto. Da mesma forma que ele nunca pagou uma conta inteira, ele sempre camuflou sua linguagem com a despretensão canastrona dos espiões. Ele desconstruía a sua técnica para não parecer estranho à porção de bacon frito com conhaque de um dólar. Isso ele fazia como ninguém. Ele era, da sua sarjeta, um voyeur da sarjeta alheia. Ele sentia prazer em lamber a lâmina da faca infectada. “Frequentemente vou comer nesse / lugar / por volta das 2h30 da tarde / porque todas as pessoas que almoçam / ali estão particularmente arruinadas / felizes pelo simples fato de estarem vivas e / comendo feijão / próximas a uma janela de vidros espelhados / que impede a passagem do calor / e não deixa que os carros e as / calçadas cheguem ao interior.” Rosna ele em “Uma janela de vidros espelhados”.

O realismo sujo desse poeta alemão-americano não é o mesmo empalhado nas pulgas, percevejos e carrapatos vendidos diluidamente em livrarias de avenidas com grande fluxo e consumido e imitado por poetas nanicos que bebem e depois lavam os aparelhos dos dentes com listerine para esconderem a ressaca. O latido desse cão só é fiel ao cio da sua própria existência. Esse é o realismo de quem de fato brigou intensamente com a vida. Quando criança Bukowski era espancado constantemente pelo pai alcoólatra. Na adolescência tornou-se mais pobre ainda e ganhou inflamações cutâneas por todo o rosto e tórax, que transfiguraram a sua solidão para sempre. Definitivamente ele entrou para a marginalia urbana como um velho trilho por onde não passam mais trens.

Bukowski nunca foi um queridinho da mídia. Sempre foi um velho anarquista. Começou a escrever tardiamente, já com 35 anos, e o fez com a paixão de um maníaco, bem mais do que cem livros. Escreveu prosa e poesia, boa e ruim. Praticou a grande literatura e a literatura barata, que não serve nem para enrolar peixe na beira do cais. Mas esse é que é o grande barato ao ler Bukowski: descobrir quais são os caminhos que levam a um boteco enfumaçado e cheio de putas e marginais ou aqueles que levam aos grandes salões freqüentados pelas boas famílias e pelos estelionatários culturais.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Cinco para as quatro

Eis um rio desaguado
Que solidão insólita aquela
Sem dentição aparente

Na margem direita
A desolação do velho sofá
Sem reino e sem níqueis
Retidos em segredos

Na margem esquerda
A disjunção onírica
Das cápsulas deflagradas
Que não decifram o inimigo

Na margem incontida
O prazer inafiançável de
Se dependurar em grampos
Sob a pele em sala escura

Eis uma inundação
De espermas nas pernas
Sem restrição aparente

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009






Torquatália
Torquato Neto em obras reunidas


A editora Rocco lançou obras reunidas de Torquato Neto em dois volumes, com organização de Paulo Roberto Pires, sob os títulos de Torquatália Volume I (do lado de dentro) e Torquatália Volume II (geléia geral). Todos muito bem organizados e muito bem pesquisados, mas com capas poquissimamente transadas, como diria o vampiro, o nosferatu urbano. Mas o que importa é o conteúdo, é estar por dentro, sem deixar nada por fora, sem deixar de constranger o constrangimento.

Dos dois um me chamou mais a atenção, o volume dois, que tem as colunas escritas pelo poeta piauiense, o período do Jornal dos Sports, com a coluna Música Popular; a curta colaboração no encarte Plug, do Correio da Manhã; e a deliciosa fase da coluna Geléia Geral, do jornal Última Hora. São escritos deferidos à queima roupa, em grande estilo bang, visceralmente passionais, desbundadamente transados, sem grilos, desbaratinados, sem nada nos bolsos ou nas mãos, apenas uma câmera na cabeça e um cometa iridescente entre os dedos, deixando um rastro imenso de história viva.

Todas as referências históricas, tidas ou retidas, são narrativas vivas - no sentido de Baudrillard - tenham ou não cursividade e sem nenhum cunho de verdade absoluta. Mas existem algumas referências históricas que são imanentes em suas revelações e que acabam por traduzir o idioma mais estranho do significado. As colunas de Torquato, que não era Hércules e nem Quasímodo, servem para desmoronar mitos e relíquias, reconstruindo, elas mesmas, um novo descaminho para a indulgência sub-repticiamente engalanada pela benevolência crítica.

Lendo os escritos da coluna Musica Popular, em que o então paladino das purezas estéticas postula suas fileiras de resistência cultural à invasão globalizada do rock e outras milongas, fica fácil perceber que aquelas velhas paridades dialéticas entre o velho e o novo, evidentes em um Brasil remoto(?) da Semana de Arte Moderna, estavam mais vivos do que nunca. Sendo que curiosamente o lado da vanguarda clamava pela tradição, assim, a palavra que mais se escreve é samba, em que se deve ler preservação; imobilidade; gôndolas de mansinho na mesmice; defesa inconteste da isonomia cultural brasileira.

Torquato escrevia sinceramente e deliberadamente determinava seus domínios e seus redutos. Já era ditadura em seus princípios. A esquerda defendia o que era “nosso”, purificada cultura cabocla e popular. A direita se quedava ante os encantos reacionários americanos. A igreja agradecia os milagres da repressão. A sociedade prosseguia com sua extensa marginalia provinciana. O mercado fonográfico assumia ares demoníacos e capitalistas. Surgiam Chico Buarque, Gilberto Gil, Sidney Miller, Caetano Veloso e Sérgio Ricardo, entre outros, que defenderiam nos grandes e pequenos festivais a música brasileira das impurezas. Era o tempo de marchas, modinhas, sambas e similares.

O grande inimigo era o iê-iê-iê na forma de pastiche e a tendência de eletrificação da música popular. Há quem afirme que era o proto-rock brasileiro. São incríveis as secularizações dos ambientes, das pessoas, dos artistas, dos empresários e da convivência cultural no eixo Rio-São Paulo, registradas por Torquato Neto, nem sempre com propriedade crítica, mas sempre munido de opinião e coragem, verdadeiramente os únicos recursos que nos podem salvar dos Chapolins Colorados da ética e das etiquetas intelectuais.

Já no período final dessa fase, com a decisão de eletrificação da música por Gilberto Gil, registrado em artigo do dia primeiro de outubro de 1967, sob o título de Compositores e Críticos, é muito delicioso perceber como a percepção intelectual de uma grande figura começa a ser moldada em pleno conflito ideológico. É muita riqueza existencial: eis o verdadeiro pf cultural, alimenta o espírito e a conduta, sem afetações ou messianismos. Para alguns exegetas mais apressados aqui se delineia um dos principais ingredientes existenciais que culminariam no suicídio de Torquato Neto, em 1972.

É muito legal perceber como a mudança ideológica, diria até, a busca incessante, modifica o signo e a linguagem. Bem mais maduro esteticamente, mas grandemente dialético ideologicamente, Torquato se mistura, se mescla, se traveste de outras faces e de outras facetas. Uma sintaxe fluida ao mesmo tempo em que fragmentada e descontínua, apresenta fatos, versos e versões sob um olhar atento aos novos tempos ao mesmo tempo em que desatento aos mesmos contentos. Eis o vampiro, que não se cansa de transfusões. Adoro o som dessa metralhadora giratória. Algumas coisas devem ser realmente metralhadas, diante da sensibilíssima alienação dos cânones.

É de lá, da famosa Geléia Geral, que se erguem e se espalham os baratos, os grilos, as transas e os parangolés opinativos de maior grandeza. Os laços afetivos se expandem pouco, mas se solidificam em trincheiras acesas, em guetos, em células de resistência, em aparelhamentos e patrulhas, como estrategicamente queriam os criminosos da ditadura militar, agora em plena tragédia social. Torquato escreve e pensa sobre cinema, música e arte em geral. Torquato confessa e exibe suas inquietações, escreve poesia e deixa um rastro indelével em nossa cultura. Nas entrelinhas é possível perceber o fim trágico, mas jamais o término, pois isso não se finda, se desdobra em encantamento.

Alguns detalhes transformam curiosidades em outras narrativas. Em momento nenhum se lê a palavra, o nome, a entidade: Tom Zé, a não ser pelo organizador, na cronologia inserida como último capítulo. Hermeto Pascoal também não é citado, como também Rogério Duprat. E deveriam? Em nenhum momento existe menção direta ao Tropicalismo, como um movimento, em nenhum escrito de nenhuma coluna. São apenas ossos do ofício? Leia o livro e tire suas conclusões. Eu recomendo, do alto da minha insolência crítica.