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domingo, 2 de novembro de 2008

A cidade travestida

Katiúscia Priscila, Andressa Kelly, Tabata Regina, Amapola Toda Boa, Berta Lorena, Aline Grandona, Vera Virada, Veruska Bom Bom, são todos nomes de guerra, que trafegam em batalhas noturnas, nas transversais da cidade mais religiosa do Cariri. Em suas rondas noturnas, os travestis conseguiram dar a Juazeiro do Norte um toque de complexidade na maquiagem dessa cidade cheia de complexos.

Quando você se depara com aqueles pequenos grupos de homens transmutados, vestidos com a sensualidade do caricato, expostos à venda - ou troca -, estrategicamente espalhados em lotes demarcados nas esquinas do centro da cidade, você pode ver tudo, menos pouca vergonha, pois esse é um fenômeno que trata da menor escolha. Ali é a própria cidade em toda sua grande extensão. Ali é o processo dialético da cidade em sua urbanidade, em que ela exclui a sua cria bastarda, para depois incluí-la como expurgo em sua lista de traumas indesejados.

Não adianta soltar os cachorros. Não adianta organizar os exércitos da salvação em cruzadas histéricas da moral e cívica, em nome da honra do bem comum. Muito menos é pertinente apontar o dedo para a crucificação de um culpado, para execração pública através do maniqueísmo venal da provinciana mídia caririense. Pois entre um chupão de língua de um travesti e seu cliente desconfiado e a venda de uma falsa garrafa de água mineral benta em tempos de romaria, não existe distância nenhuma. Ambos são comércios. Ambos são frutos da permissividade, a mesma permissividade velada que existe no axioma maior dessa cidade: “aqui se ganha a vida”.

Os travestis existem em todas as grandes metrópoles. Até parece que eles fazem parte do processo de verticalização da cidade, como símbolos fálicos ao avesso, exibindo em sua desafiadora complexidade o desvio mutante da negação da masculinidade e alegoria infértil da afirmação feminina. Os apartamentos, os bares, a rispidez do asfalto, a astúcia do comércio, a tensão do tráfego e o dinheiro no bolso a qualquer preço, são coisas de macho.
Veruska Bom Bom, oferecendo seus silicones sem nenhum pudor, na esquina da rua São Pedro com a rua Do Seminário, é coisa de macho.

Essa cidade, como quase todas, é fatalmente feita para machos, machos dominantes. Da mesma forma assim são os bordéis com suas clientelas embriagadas; a música tosca e degradante que toca nos paredões de sons de 25 mil reais; a cachaça servida com buchada; o ramo da pirataria; a indústria da agiotagem; o futebol na tela clandestina; o amor bandido; o prazer proibido; a pistolagem; o superfaturamento; a sonegação de impostos; a cegueira da justiça; a soberba e a prepotência. São todas coisas de macho e são todas originadas na permissividade. São fatos e fatores dos mecanismos das relações sociais. São pedaços de sucatas que fazem parte do quebra-cabeça dos escombros da humanidade.

Não adianta prender Katiúscia Priscila e ter que soltar Berta Lorena. Não adianta atropelar Tabata Regina com um Honda Civic e ter que amparar pelo Sistema Único de Saúde a invalidez de Amapola Toda Boa. E nem de forma nenhuma amaldiçoar o travesti da esquina mais próxima tendo em casa filhas pródigas, parideiras, prestes a constituírem famílias ante um futuro sempre ameaçador. É preciso conviver sem permissividade. É preciso assistir, não como platéia de uma peça trágica, mas com um olhar de intervenção social.

É necessário que a sociedade, em parceria com os poderes públicos e as instituições não governamentais, atuem na transformação da cidade, antes que ela se torne definitivamente em um monstrengo urbano, sem saídas plausíveis para suas anomalias. O que está em jogo aqui não é a opção sexual em si, mas a prostituição em alto grau de agressividade, seja ela de qual opção sexual for. Para uma abordagem sensata do fenômeno, através do sistema de parcerias são necessários projetos sociais legítimos, que possam retirar essa venalidade sexual das ruas.

No entanto, o que se evidencia aqui são projetos sociais de fato e de direito, elaborados sob o signo da idoneidade e não determinadas parcerias entre organizações não governamentais e o poder público, em que o mesmo caráter de prostituição dos travestis impera. Esses tipos sociológicos são vistos largamente, rondando as instituições públicas com suas maquiagens pesadas, seus trejeitos exagerados, suas agendas lotadas de contatos descolados, e suas bolsas rodadas, prontas para repartirem as comissões.

De fato, a cidade em sua totalidade, não se traveste. Ela é autêntica em sua pluraridade. As suas transversais são próprias. Os olhares que recaem sobre ela é que são viciados em modelos prontos e bem embalados, vendidos sob a ética do comércio de quinquilharias dos seus pequenos e grandes mercados. A recusa não é própria da cidade. Isso é coisa de macho, que exorcisa o pecado segurando o saco, para que a inteligência não vaze e forme uma poça de lama, transformada em balneário pelos seus piolhos.

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