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Crato, Ceará, Brazil
Um buscador, nem sempre perdendo, nem sempre ganhando, mas aprendendo sempre

quarta-feira, 30 de julho de 2008


A vida como ela é

Iracema dos lábios de réu
Mora debaixo de um luxuoso viaduto
Com vista para o mar
Exibe com orgulho o seu diploma
De primeira miss Ceará
Peri é líder comunitário na Rocinha
Tem uma ong de fachada social
Que atende aos órfãos do narcotráfico
Mas por trás do cenário ele
Alicia menores virgens para o
Consumo do Congresso Nacional
Ceci é sacoleira em tempo integral
Vende mercadoria do paraguai
Sem pagar imposto ou direito autoral
Espera a morosidade da justiça
Pra resolver o valor da pensão
Do ex-maridão que virou marginal
Fabiano levou um tiro
Numa invasão tumultuada do MST
Agora exibe o ferimento horrível
Nos coletivos interestaduais
Em troca de trocados emocionais
Chico Bento virou cantor de
Uma banda de forró eletrônico
Dizem que fez um pacto com o diabo
Pra sustentar a família fora
Das dependências do curral eleitoral
Dizem que por trás da pornografia
Existe um cara que é temente
De todos esses entre tantos
Só Bruna Sufistinha sabe ser
A vida como ela é: escreveu não
Leu o pau comeu

quinta-feira, 24 de julho de 2008


O dono do palco

Um amigo e companheiro de inúmeras trilhas musicais, Aquiles, divide comigo uma mesma opinião: em se tratando de show, o artista tem que ser dono do palco, não pode pedir emprestado a quem quer que seja. Tem que mostrar a certidão de propriedade. Assim foi Cleivan Paiva no show de abertura do III Festival de Música Instrumental do Cariri, promovido pelo essencial, digo essencial, Centro Cultural do BNB.

Não decorei nenhum nome de nenhuma música. Também pouco importa, uma vez que elas são por si inesquecíveis enquanto composição. Fazia tempo que eu não testemunhava esse mago da guitarra em ação. Que força de improviso, em cima de harmonias complexas e andamentos sobrenaturais.

O trio, formado por Cleivan, João Neto e Demontier Delamoni, respectivamente guitarra, baixo e bateria, exibiram técnica e talento. João Neto em noite especialmente inspirada, com trezentas mãos e uma consciência maior do que a Chapada do Araripe, deu um calor a mais. Convenções, harmonias penduradas, improvisos geniais e climas de pura dinâmica fizeram valer a noite.

O som não estava dos melhores, a guitarra muito baixa, inclusive sendo encoberta pela bateria em alguns momentos mais pirados de Delamoni. Agora baixo e bateria estavam bem mixados, sem brechas de timbres. A guitarra de Cleivan, na primeira música, estava muito abafada pelo excesso de grave, logo corrigida, mas permanecendo um pouco abaixo dos outros instrumentos, o que jamais pode acontecer, se o show é exatamente do guitarrista.

Cleivan é um artista único no cenário musical caririense, rápido, criativo, o riginal e preciso, sem deixar notas espalhadas no chão e sem enganações, sem aqueles clichês ridículos de jazz ou da chamada pegada brazuca, meio samba meio bossa, que tanto enche o saco. Só mesmo o solfejo de voz em cima de algumas melodias, que é completamente redundante e perfeitamente dispensável. Cleivan, esqueça o microfone meu velho.

A guitarra limpa, com o som educado do captador do braço engordado pelos registros graves, parece ser a tônica de mil entre novecentos guitarristas de jazz. Da mesma forma que o fraseado rápido e sem bands ou qualquer outro recurso mais sujo. Cleivan apresenta essas características em seu timbre e em seu fraseado, o que eu particularmente acho um verdadeiro desperdício. Nesse ponto eu sinto saudades do som mais agressivo e mais elétrico dos tempos do Ases do Ritmo. Mas nada que possa arranhar o quadro geral, são apenas preferências.

Cleivan abriu com classe e estilo o III Festival de Música Instrumental do Cariri, comprovando o seu grande momento como instrumentista e compositor. A programação promete grandes apresentações, mas com certeza, a de Cleivan será uma das principais.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

A proteção

Os leprosos estão fora da cidade.
Agora os risos são arreganhados dos lados.
Parede e meia separam os resolutos.
As amantes já não podem provar nada,
Mas no fundo elas gostam desse
Arrepio brusco de chuva nas vulvas,
Podem ser entendidos como lamentos
Indo lentos pelo corredor adentro.

As moedas resguardam o grude.
Elas cultivam os solavancos e histéricas
Copulam metálicas nos bolsos curvos.
Uma mancha se forma bem ao lado
Do papel amarelado em silêncio,
A oração pra sumir diante do inimigo
Foi escrita em tremido e parda.
Agora coleciona mais um obscuro.

Existe uma conferência de pulgas
Sobre a qualidade do sangue em serviço.
As regras são cretinas em suas réguas,
Medem o escondido sem o nulo.
Uma a uma as reticências são sós,
Enfileiradas rumo ao grande futuro.
Mas, por Deus, está tudo bem,
Os leprosos estão fora da cidade.

segunda-feira, 21 de julho de 2008



VIVA LA VIDA EM TOM PASTEL

Depois de percorrerem o mundo, lotarem estádios e embolsarem muito dinheiro, eles se reclusaram, compuseram novo material e lançaram a maior bomba de 2008. Definitivamente a banda Coldplay está configurada como uma banda de um disco só, o primeiro, e algumas faixas esporádicas. “Viva La Vida Or Death and All His Friends ”, segundo o vocalista Chris Martim, faz referência a uma frase de Frida Khalo, que ele achou o “máximo”.

Para esse novo cd, que já vendeu mais de um milhão de cópias, eles convocaram um dos maiores magos da produção do universo pop, Brian Eno, que começou a construir a sua reputação quando ainda era integrante da lendária banda Roxy Music, na década de 70. De lá para cá, Eno tem assinado a sua grife de produção, com o respaldo de parcerias de peso, como Robert Fripp, David Bowie, Carla Blay, John Zorn, entre inúmeros outros, inclusive U2, a matriz sonora do Coldplay.

Eno domina velhas e novas tecnologias, é músico, compositor e arranjador. Mas nada disso adiantou, a estética sonora é a mesma dos tempos de Ken Nelson, em A Rush of Blood to The Head, e em “X&Y”, que é produzido em sua maioria por Danton Supple e algumas faixas por Ken Nelson. Até parece que Eno compareceu apenas com o nome e deixou a sua reputação no hall de entrada do estúdio.

Em “Viva La Vida” o Coldplay não tenta se livrar de forma nenhuma da sombra sonora do U2. Muito pelo contrário, faz questão mesmo de imitar, tal qual uma banda cover. Ao longo de um interminável repertório, a banda desfila o que parece ser uma única composição, com uma mesma melodia e com os mesmos truques vocais. São faixas que não conseguem ser tristes e nem melancólicas, apenas letárgicas. É comum você encontrar nos encartes dos discos da banda, agradecimentos pela compra, pela audição e pela paciência. Nesse deveria vir um pedido formal de desculpas pela completa falta de criatividade.

O som de “Viva La Vida” parece ter vindo diretamente da merdologia dos anos 80, a pior década da produção pop, em que poucas coisas se salvam. “Viva La Vida” é um meio termo entre o pior do Marillion, se é que existe algo bom deles, e uma mistureba de Simple Minds e U2. Acho que Eno chegou antes do que qualquer um dos membros da banda, e gravou uma cama sonora cheia de delays e reverbs digitais, aprontou toda a sua parafernália de processamento digital e esperou a banda.

Até palma tem delay e reverb nesse disco. Existe um exagero de ambiências inexplicável. A bateria foi plastificada em processamentos digitais, aliás, captar baterias nunca foi o forte de Eno. A guitarra é uma chatice pobre de delays, a milhões de distância do leque de timbres de um Jack White, por exemplo. Os teclados eu vou resumir em uma única palavra: merda. Os vocais foram gravados em destaque, anunciando aí uma breve separação.

Alguém precisa dizer para o Coldplay que clima musical não é uma questão de efeitos como chorus, flange, delay, phase e reverb, muitos menos compressores e seqüenciadores; é uma questão de dinâmica, domínio dos tempos musicais, dos andamentos e a da instrumentação. É só pegar qualquer disco de Nick Cave, Tom Waits, Joni Mitchel, Van der Graff ou King Crimson e aprender.

Para os fãs, nada do que foi dito aqui faz diferença. Também não importa. Para quem está de fora, no entanto, esse é um disco completamente descartável. Não existe destaque nenhum nesse disco. Quem conseguir ouvir esse disco de uma sentada só pode ser considerado um ex-combatente do golfo pérsico, cheio de seqüelas auditivas e mentais. Essa é uma bomba com mecanismos sofisticados. Para completar a banda Creaky Boards acusa Chris Martin de ter usado a música “The Songs I Didn’t Write” para fazer a faixa “Viva La Vida”.

sexta-feira, 18 de julho de 2008

Dos opostos

Fragmento encontrado entre os pertences
De um beduíno conservado em êxtase até hoje,
Enquanto aparelhos vasculham o espaço
Em busca de vida inteligente


Os caçadores de palavras,
Amparados por seus aparatos,
Entraram em rota de colisão
Com a essência dos Essênios.

Dissecaram signos e
Neutralizaram o ar dos beócios
Com a minúcia do escafandro,
Anunciando a nova convenção.

Quando as suas botas atingiram
A nebulosa de Magellan,
Lá as provas evaporaram,
O intelecto tornou-se deserto.

Lá, eles encontraram
Uma chuva de almas sutis
Que invadiram os seus corações
Com o silêncio absoluto.



Os poemas em seqüência pertencem ao livro Manual de Sobrevivência Para Astronautas, ainda inédito.
Das ruas

Lido em uma lápide de um
Cemitério clandestino descoberto
Em fortuitas escavações


Na violência da cidade veloz
Um carro bateu em outro carro,
Deu-se um escarro,
Diferente do escargô,
Que carrega o seu fardo lentamente.
Diferente do que Deus
Fez carcomer e expelir
O pulmão de Cruz e Sousa.
Simplesmente ex-carros,
Símbolos da mesa posta,
Postais da voraz cidade.
Das correspondências

Alguns teorizam que o fragmento
Foi extraído diretamente do diário
Secreto da beata Maria de Araújo,
Mas nada foi comprovado ainda



Os catadores de papelão
Estão bem próximos do chão.
Proclo e Plutarco estão
Bem próximos das cortinas
Das linhas versículas.
Os ciclos dos reciclados
Estão bem próximos
Dos catadores de papelão,
Que buscam um lugar no céu.

As crianças brincam,
Se divertem com embalagens.
O pai apanha, amarra,
Amarrota e acumula,
Subjuga as fibras pardas
Aos fios do compacto.
Como é o teu nome? - É João.
E o teu? - É Tico. E tem out’o
Que é Ciço, de Pad’e Ciço.
Das preces

Dizem que foi encontrada nos bolsos
Do poeta e canalha François Villon



Berenice!
Invoco-te os dentes!
Berenice!
Todos por toda parte.
Brancos.
Sisos, incisivos,
Cravados graves
Na parte podre
Da minha estrada
Florada e deflorada.

Berenice!
Invoco-te os dentes!
Berenice!
O teu mudo
Mudado mundo,
Multiplicado
Em dilacerantes
Dentes por toda parte.
Vence-me, faze-me
Feze indefectível.
Das estratégias

Provavelmente recolhido do repertório
De Zé da Bigorna, antigo e falastrão
Cantador de feira


As nuvens escapuliram do céu,
Dobraram em becos,
Correram em avenidas,
Subiram ladeiras,
Vasculharam telhas,
Supervisionaram a visão
E o horizonte líquido.
Foram três dias de função,
De água pura, amniótica:
Para cada princípio do céu
Uma matéria transbordada,
Uma teoria submersa, à deriva,
Ou simplesmente afogada.
Foi quando nasceram
Os achadores de cacimba.

AS PREGAS IMPAGÁVEIS DE JOVELINO SAFADEZA

A pequena cidade de Alvoredo, encravada no vale do Cariri, amanheceu de supetão. Lá pelas cinco da manhã uma fedentina ilustre tomou conta do arruado e não deixou ninguém mais dormir. Aos poucos, cidadãos e arremedos foram levantando. Logo grupos foram se formando frente às casas. Naquele momento eram todos iguais. Em pouco tempo uma multidão de insatisfeitos debatia com alvoroço o tema imposto. As opiniões eram divergentes. Alguns achavam que aquilo fedia a ataque terrorista. Outros achavam que era perseguição política. Muitos achavam que o prefeito estava por trás. Inúmeros afirmavam que aquilo era uma injustiça. E então vieram os esporádicos falta de reza, culpa do forró, obra dos monarquistas, a podridão da república, as guengas da classe alta, a corrupção dos vereadores... até que alguém enfastiado vociferou que assim ninguém resolvia nada, era melhor criar grupos de investigação e descobrir de onde vinha o fedor. Assim foi feito e assim saíram os grupos de faro em punho, certos de um grande espetáculo da inquisição, com fogueira e tudo. Grupo sobe, grupo desce. Um trancilin da boba. Foi Miro de Armiza que alertou: “essa porra vem daqui”, parado em frente ao estabelecimento promíscuo de Conceição dos Santos, antagonicamente conhecida como Ceição dos Prazeres, ao seu dispor sempre. Os grupos se reuniram no âmago da questão e logo o padre tomou a palavra, em nome de Deus: “Isso não é só a pouca vergonha dos homens de Alvoredo não. Isso é a soma de todos pecados. É um castigo geral, pela língua de Gertrudes, pela avareza de Pedim Três Quartos, pela roubalheira de Toim da Belina, eleito sabe Deus como, é pela prepotência de Almerinda, que fala dos filhos alheios, mas tem duas filhas descabaçadas e um maconheiro, é pela....” O discurso começava a incomodar. A multidão em frente ao prostíbulo se inquietava. No meio da algazarra alguém gritou tira esse baitola daí. Mais confusão ainda, até que o delegado Epaminondas, mais conhecido pelo apelido de tamanduá, devido ao seu rosto ser afilado pra frente, quase em funil, tomou a palavra, prometendo colocar as garras da justiça no responsável pelo ato e fazê-lo confessar sob tortura, o autor intelectual da ação criminosa. Enquanto o fedor subia de revestrés e o povo suava e as mulheres vomitavam, o juiz improvisou uma intervenção tangedora da afirmação de Tamanduá, reiterando o caráter supremo e imparcial da justiça, enquanto seu secretário distribuía o cartão do seu genro, que nunca fez porra nenhuma, a não ser se formar em direito numa faculdade particular, com ingresso facilitado. Foi quando Berlamino Beleza, temendo futuros inquéritos, propôs a invasão do recinto, colocando a sua vasta experiência geográfica do ambiente a serviço da comunidade. Houve indecisão. Mas resolveram formar uma comitiva de notáveis, guiada pelo cafajeste maior da soberba Alvoredo. Entraram na sala e todo mundo dormindo. O fedor aumentando. A multidão tensa. Entraram numa segunda sala, que servia de bar e equipamento cultural para as preliminares e todo mundo dormindo. O fedor aumentando. A multidão tensa. E foram abrindo os quartos um a um, dispostos em paralelo em um corredor curto, mas promissor. Foram abrindo e se repugnando, e se extasiando, e se excitando, e se abismando com o que queriam e não queriam ver, e todo mundo dormindo. O fedor aumentado. A multidão preste a invadir. Depois do último quarto, o fim do corredor. E lá, obscurecido pelas sombras do prazer pago, repousava no cimento frio, emoldurado pela inércia dos mistérios profanos, um pacote retangular, muito bem amarrado. A fonte de toda a escatologia cósmica exibia a sua singularidade diante de tão nobre e perplexa comitiva. Ficaram mudos, exalando a criação e consumação dos tempos. Diante de tamanho perigo - afinal poderia estar começando ali a maior guerra bacteriológica de todos os tempos, o fim da humanidade -, alguém jogou a responsabilidade para a ciência. Chamaram o único doutor da cidade, com mestrado na grande Juazeiro do Norte e doutorado na misteriosa Crato, ambas terras do Padre Cícero. Vasculharam a cidade e nada. O desespero já tomava conta. A histeria arrumava a sua roupa de gala, quando alguém disse em tom de desabafo: “esse filho da puta tá é aí!” E estava mesmo. Depois de uma rápida investida o baluarte foi encontrado escornado em uma cama, ao lado de sua Penélope, literalmente com a boca cheia de pelos, sob a aprovação de alguns e a maldição de outros. Já de pé e diante do fenômeno a ser observado, com o fedor politicamente correto acrescido da sua ressaca, vaticinou,: “Senhores isso não é só assim, a ciência não pode se dobrar ao imediatismo dos desejos. É preciso tempo. Eu tenho que ter um procedimento ético. Observar, eis a chave. Tenho que reduzir o objeto à sua mínima parte, desenvolver teses, considerar experiências, usar a precisão de meus aparelhos e me reportar a teorias já existentes de René Descartes, Russeau e Newton, é necessária apologética.” Nisso o fedor estava se transformando em extermínio de massa. Foi quando alguém perguntou: “E na bunada num vai dinha não?”. Houve empurra-empurra, tapas, desespero e zoada muita. A muvuca foi desfeita com os gritos de Jovelino Safadeza, que acabara de abrir as portas da suíte presidencial, logo ali, vizinho ao centro de estudos e pesquisas, perguntando o motivo dessa des-foda. Apontaram para o pacote absconso, enigmático como uma pirâmide. Todos estavam agoniados com a podridão, menos Jovelino Safadeza, que demonstrava uma familiaridade desconcertante. Quer dizer que a putaria todinha é por causa disso? - perguntou apontando o pacote. Home isso é buchada dormida, do café de Rita Risonha. Bosta customizada. Sabia que o estrago seria feio e eu num ia cagar na suíte pra estragar a reconciliação, daí fiz esse pacotinho de merda. Agora torô dento. É só dá discarga, dando o assunto por encerrado. Ele foi prontamente linchado sob o descontrole total da população e o choro secreto de Augustinha, filha de Rosalvo Ágil, prefeito de Alvoredo. O prédio foi confiscado, passou por uma reforma e virou memorial. No marco zero foi erigido um pequeno obelisco com placa de prata, com o nome de todos os notáveis. Na lápide de Jovelino ainda é possível ler: aqui jaz Jovelino dos Prazeres e o seu incrível cu de aço.

terça-feira, 15 de julho de 2008



RIVOTRILL
É REMÉDIO INSTRUMENTAL


“Curva de Vento” é o nome do primeiro disco da banda Rivotrill, lançado de forma independente e gravado de forma experimental. A banda levou os vários instrumentos e a parafernália de gravação para uma casa e lá passou uma semana em busca de timbres e texturas diferentes, gravando em banheiro, salas, debaixo de escadas, dentro de caixa d’água e varandas. Além disso a banda contou com participações mais do que especiais. O resultado foi um disco enxuto, coeso e com identidade própria, o que é mais importante nesse mangue de diluições ilusionistas.

A banda é formada por Júnior Crato: flauta, sax e teclados; Rafa Duarte: baixo e efeitos; e Lucas dos Prazeres: percussões diversas. Rivotrill é instrumental sem a conotação de improvisos virtuosos e muito menos os patéticos repertórios de chavões do “som brazuca”. Em “Curva de Vento” você não vai ouvir nenhum babaca cabeça de pulga “estraçalhando” a harmonia de “Asa Branca”, com execuções modais com intenção blues ou qualquer clichês desses de vídeo aulas. Aqui a “Garota de Ipanema” foi pra um museu na caixa-prego e levou todos os estandartes para uma suruba de restauração.

Esse é um disco autoral. É claro que você escuta os ecos do frevo, dos caboclinhos, do coco, do maracatu, das bandas cabaçais, do rock, do jazz e da música contemporânea, mas tudo em doses equilibradas, sem que as influências se transformem em apropriações indébitas. As composições são fechadas em arranjos funcionais, sem aquela velha fórmula cansada e cansativa da execução da seqüência harmônica, ponte e improviso. Elas recebem o tratamento de texturas, de intervenções de diálogos, fragmentos sonoros, experiências com delays, intertextualidades, vozes, timbres, ambientações e climas.

Naná Vasconcelos, dono de uma sensibilidade musical genial, aparece em “A casa” e “Groove Tube”, com sua elegância e sutileza de sempre. “A casa”, faixa que abre o disco, é climática, nela Naná toca congas e efeitos. Essa faixa é a apresentação do leque de timbres recorrentes em todo o disco. “Groove Tube” tem pegada bem nordestina e uma tensão climática muito contemporânea, com vozes, palmas e efeitos muito bem colocados. Nela Naná toca tambor falante, faz vozes e efeitos.

Spok toca sax na faixa “Cangote”, uma composição cheia de mudanças de andamentos e síncopes bem legais. Spok tem uma pronúncia fenomenal no sax, com crescentes precisos e dinâmicos. O diálogo entre o sax e o piano, e depois entre o baixo e o clavinete eletrônico, ficou muito massa. O reverb no sax, a pegada de barítono e os efeitos deram uma textura bem sacada à faixa. Esse é um dos pontos altos do disco. A percussão de Lucas, como em todas as faixas, está muito bem colocada. Segura e cheia de swing.

Fabinho Costa toca trompete na latina “Charo Cubano”, cheia de pontuações e convenções, com uma levada balançada. O solo de Fabinho é rápido como a faixa, mas muito bem colocado. O baixista Rafa tem uma pegada também cheia de swing. Ele e Lucas formam uma dupla muita bem entrosada. E não é pelo fato de que não existem solos de sete léguas que não se pode afirmar que os três são virtuoses em seus instrumentos. Eles são sim, mas naquilo a que se propõem como banda e não naquela concepção de quebrar tudo individualmente. Júnior Crato é um flautista muito afinado. É possível perceber em sua embocadura uma variação timbrística muito legal em que ele passeia de Jean Pierre Rampal a Hubert Lewis, de Ian Anderson aos Irmãos Aniceto. O seu trabalho de sax é também consistente.

Além disso vale a pena salientar algumas captações de percussão de som aberto, como em “Alaursa Quer Farinha”, que ficaram massa demais, sem aquele exagero de compressão e de médios. Sobre essa faixa também vale salientar a homenagem intertextual a Roland Kirk, um dos maiores pirados de todos os tempos, saxofonista e flautista americano, cego e gênio de nascença, um iconoclasta de vanguarda, que tirava uma onda de tocar vários saxs ao mesmo tempo.

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O MALTE DE MAUTNER

“Para Iluminar a Cidade” é o primeiro disco de Jorge Mautner. Gravado ao vivo no Teatro Opinião, nos dias 27 e 30 de abril de 1972 e lançado pela Philips, através de um selo criado por Nelson Mota, que vendia discos pela metade do preço e conseqüentemente pela metade da qualidade técnica, chamado “Pirata”.

A música de Mautner foi lançada tardiamente, nesse período ele já tinha mais de trinta anos, o que contrariava completamente a estirpe mercadológica da juventude, maior nicho de consumo desde a década de 60, a partir do “baby boom” americano. Devido à estética de sua música e ao seu comportamento, logo ele foi relegado ao plano dos marginais malditos, para fazer companhia a Jards Macalé, Luiz Melodia, Odair Cabeça de Poeta, Sérgio Sampaio, entre outros.

Muito antes de ser compositor e tocador de violino, Jorge Mautner já era escritor, também marginal e maldito, com vários e estranhamente interessantes livros lançados tais como “Deus da chuva e da morte”; “Narciso em tarde cinza”; “Kaos”; “Fragmentos de Sabonete” e “O vigarista Jorge”. Embora pareça o porta-voz do nonsense, Mautner tem um discurso definido e consciente, que ridiculariza tanto os ignorantes, reféns do mau gosto, quanto os intelectuais pseudo-acadêmicos, reféns das ilusões teóricas armazenadas em nitrogênio líquido.

A independência discursiva de Jorge Mautner é a sua marca registrada, esteve entre os tropicalistas no exílio, mas nunca foi um deles; vivenciou a efervescência do rock nos Estados Unidos e Inglaterra, mas nunca foi rockeiro; leu avidamente Sartre e Nietzche, mas nunca foi existencialista, criou sua própria teoria, a do Kaos; colaborou com a imprensa nanica, mas nunca fez parte da esquerda festiva e nem da arte de resistência. Mautner está muito mais para o anarquismo cultural de Tristan Tzara do que para o formalismo condecorado de Chico Buarque.

“Para Iluminar a Cidade” veio para desafinar o coro dos des-contentes. Em 72 o vigarista Jorge, sem trocadilhos, não era nem contra ou a favor de nada, muito pelo contrário todavia muito embora. Em 72 ele apresentou a sua ironia ferina, de agente infiltrado no sistema, só para sabotar as jóias da coroa. O disco apresenta o estranhamento discursivo e a eterna carnavalização dos costumes sociais, amargamente sincréticos, da elite brasileira.

Jorge Mautner é desafinado e arranha literalmente as cordas de um violino bastante sofrido na mão dele. Nesse achado do cancioneiro popular brasileiro, a banda é desentrosada e não tem nenhum músico virtuose. Nota-se que o público é pequeno, como ainda hoje é o seu. Algumas músicas parecem trilhas de fim de noite em um boteco de subúrbio. Mas esse é que é o charme desse artista nada inofensivo. A vigarice musical de Jorge Mautner é o antídoto para o estelionato cultural de subprodutos como Jorge Vercilo, Ana Carolina, Adriana Calcanhoto, Quarteto em Si, Mpb 4, Seu Jorge e outros dentrifícios inorgânicos que fazem parte da higiene mental do brasileiro empedernido.

A qualidade técnica do disco é sofrível, mesmo passando por um processo de remasterização do lançamento em cd, que traz três raridades como faixas bônus: as duas marchas de carnaval lançadas em compacto, “Relaxa, meu bem, relaxa” e “Planeta dos macacos”, além da histórica, hilariante e satírica “Rock da barata”, gravada ao vivo no Festival Phono 73, promovido pela Phonogram.

Os destaques mais do que especiais vão para as faixas “Super Mulher”, “Olhar Bestial”, “Sheridan Square” e duas faixas imperdíveis, que resumem magistralmente o que é e o que despropõe Jorge Mautner: “Estrela da Noite” e “Quero Ser Locomotiva”. Essa última, com a sonoridade que está aqui e com a interpretação histórica de Mautner, é um dos maiores achados da marginalia brasileira.

A banda

Jorge Mautner - voz e violino
Carneiro (Nelson Jacobina) - violão
Sérgio Amado - violão
Alexandre - baixo
Tide - percussão
Otoniel percussão
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A REBELDIA EM FOCO


“Culturas da Rebeldia - A juventude em questão”, escrito pelo sociólogo Paulo Sérgio do Carmo e editado pela Editora Senac, faz um balanço dos movimentos culturais da segunda metade do século XX. Esse é um livro dedicado basicamente aos jovens leitores, com uma linguagem sem rebuscamentos teóricos - que tanto enchem o saco -, leve e dinâmica, sem rodeios. No entanto é fácil perceber ao longo das 279 páginas que as informações nelas contidas servirão para muitas gerações, principalmente nesses tempos de ignorância recalcitrante.

O livro é dividido em duas partes. A primeira aborda as décadas da segunda metade do século XX, a partir dos anos 50 até os anos 90, com subtítulos bem interessantes: “Os anos 50: anos dourados; Os 60: anos rebeldes; Os 60: a tropicália diz não ao não; Os 60: a revolta estudantil; Os 60-70: rumo à luta armada; Os 70: anos de ressaca; Os 80: o rock balança a MPB; Os 90: para além dos caras-pintadas; Os 90: funk e rap: as vozes da periferia.

A segunda parte do livro aborda assuntos imediatos da juventude, como o consumo e a moda como forma de manifestação cultural, a questão da formação acadêmica e do primeiro emprego; o problema da disseminação da violência; a questão da ideologia; além da convivência com as ferramentas digitais. Tudo isso em referência aos aspectos históricos e aos desdobramentos culturais proporcionados por esses fenômenos existenciais. Ao final do livro, além da bibliografia existe um glossário muito legal e sugestões de livros e filmes com temáticas afins.

Para quem é completamente leigo sobre o assunto ou para aqueles que vivem do achismo e da pose imediatista de levantar bandeira de porra nenhuma, esse é o passo inicial para você saber quem é quem na feira livre. Serve, por exemplo, para você entender que a banda “Cachorro Grande” é um pastiche dos mods ingleses, de bandas como The Who, e que na época existia uma ideologia por trás, não era só uma questão de figurino; ou entender que “NX0” é um subproduto emo, que por sua vez já é um subproduto do gótico, ou seja, que essas duas bandas estão classificadas nas prateleiras de cosméticos, sob o rótulo de cremes para as cutículas, extraído da crise sexual das cenouras e das vargens.

Esse livro de Paulo Sérgio do Carmo, que é mestre em filosofia e publicou livros no gênero como o excelente A ideologia do trabalho: história e ética do trabalho no Brasil, entre outras coisas, proporcionará ao leitor um discernimento mais complexo na hora de se posicionar perante os fenômenos do consumo de arte e da cultura de massas, o que é fundamental na hora das suas escolhas, pois arte não é questão de gosto, é questão de consciência crítica, falo de critérios e não de maniqueísmos entre bom e ruim, simples e complexo, sagrado e profano, ou outras babaquices do gênero.

Logo na introdução do livro o autor desperta os sonâmbulos com uma instigante análise dos desdobramentos da frase “Não confie em ninguém com mais de trinta anos”, pronunciada nas agitações estudantis na Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, nos fins da década de 60. o autor analisa que esses jovens acusavam seus pais e professores, educados pela disciplina, pelos princípios do autoritarismo e da hierarquia, e que esses métodos geraram por exemplo o nazismo e a corrida armamentista da guerra-fria. Esses jovens acusavam também os executivos engravatados, que fomentavam as calúnias humanistas de Wall Street. Mas esses mesmos jovens, ou grande parte deles, se transformaram em yuppies nos anos 80, ocupando altos cargos executivos ou desenvolvendo carreiras políticas, sendo eles agora cobrados pelos ideais de liberdade e igualdade que eles acreditavam.

Esse é um livro não só para curar a ignorância letal daqueles pimpolhos criados pelas babás eletrônicas, que vivem à sombra do vulcão das tecnologias digitais, mas também para curar o supremo radicalismo reacionário e burro do machismo feudal de muitos pais que dirigem os sacro-santos lares de boa parte da classe média brasileira. Esse livro não contém contra-indicações é só correr para o abraço.

quarta-feira, 9 de julho de 2008


A CADEIA DESENCADEADA

Uma criança é barbaramente assassinada por policiais militares no Rio de Janeiro, visivelmente drogados. Esse é mais um caso de erro fatal envolvendo inocentes, em meio a mais um patético e bizarro pedido de desculpas à sociedade por parte das autoridades. Não existe mais banda podre nos segmentos públicos do Rio, tudo foi transformado em uma única e imensa bunda cheia de estrias e celulites que caga a sua venalidade por sobre a inércia da maior parte da sociedade, vítima do gás paralisante do rabo preso.

O projeto de lei que impede a candidatura de políticos com ficha suja é deixado de lado, pelos autores que pretendem sujar futuramente suas próprias fichas, e tem previsão de votação só em agosto.Esse é mais um exemplo de que a canalhada que foi eleita não pretende de forma nenhuma largar mão dos instrumentos “legais” que viabilizam a formação de quadrilha e a roubalheira escrachada, diante de uma maioria da sociedade sorridente e esperta, cheia de xinga, provida de jeitinhos e contatos, munida de parentes e aderentes, sempre em busca de resolver uma parada aí através da moeda suprema do voto letal guardado na manga.

Paulinho da “Força” diz que é inocente e que é vítima de “perseguição política”, diante de uma platéia de velhos ladrões empanturrados de pizza, com gorjeta paga ao entregador com dinheiro lavadinho lavadinho, com cheirinho de novo. Esse é mais um caso de fortalecimento do adágio humanista: “você também é capaz”. Se você não tem uma linhagem de políticos de carreira da alta sociedade - ou da baixa mesmo, tanto faz -, ou se você não é dono de uma fortuna súbita e devidamente criminosa, você pode começar por baixo, como presidente de um time de futebol de várzea, presidente de um clube recreativo, presidente de um sindicato, líder comunitário, diretor de uma Ong, não interessa, o importante é você comandar. Seguindo esse caminho ensinado diariamente na política nacional, sua primeira capa em uma revista semanal não custará. Será inesquecível. Será finalmente o estrelato.

Já o Comando Vermelho, que divide o governo das favelas do Rio com as milícias armadas - formadas por policiais civis e militares -, declara o valor das recompensas pela morte de oficiais do exército, envolvidos no narcotráfico.Essa é a declaração universal da utopia da luta armada, da revolução popular, único fenômeno capaz de mandar para o inferno, no paredão de fuzilamento, todos esses filhos da puta sugadores do bem público. Estamos ferrados definitivamente. Não nos resta nem o radicalismo patético dos órfãos de Fidel, a estupidez da revolução também nos foi vetada. Brasileiro quando pega em arma, de forma organizada, forma quadrilha. Oficial ou oficiosa.

Do alto do seu poder totalitário e totalizante, outorgado pela canastrice da ciência, através dos anais e anus da jurisprudência, o presidente do Supremo Tribunal Federal declara que a ação da Polícia Federal ao mandar para a cadeia de uma vez só o ex-prefeito Celso Pitta, o doleiro Naji Nahas e o banqueiro Daniel Dantas, foi espetaculosa e exibicionista e que esse abuso de poder será revisto. Essa é a estratificação do espetáculo. É a estratificação que estava faltando para organizar a vida pública e privada do brasileiro. Qualquer um podia assumir o papel de estrela, de mocinho ou de bandido.


A guerra de egos estava tornando os noticiários um verdadeiro saco de gatos. Inúmeras sumidades do submundo do crime apareciam e desapareciam assim sem deixar vestígios. Agora ficou tudo claro, depois da resolução do Supremo, a marginália finalmente foi assistida pelo poder público e foi agraciada com o prêmio máximo. Ficou estratificado que espetáculo só pode ser dado pela polícia quando se tratar da ralé. Só quem tem direito a algemas é a pobreza. Foi instituído então, por tabela, que o cargo de palhaço, nesse espetáculo de gala, é nosso. Mas com um detalhe, as risadas conseqüentes serão todas monitoradas e passíveis de processo ou hábeas corpus, dependendo da classe.

Esse é um retrato 3x4 das implicações do poder no Brasil. Você imagina que são ações isoladas. Mas não, está tudo interligado, são velhas pregas muito bem empregadas rumo às cabeças plurais do brasileiro. Historicamente interligadas, como os dentes postiços da dentadura postiça do primeiro rei postiço que desembarcou nessa terra de promissão postiça, o primeiro bandido espetaculoso, aquele que inaugurou essa latrina toda, que de postiça não tem nada, fede mesmo.

segunda-feira, 7 de julho de 2008






UM PAPAGAIO DE FUTURO

Poesia. Atitude. Postura de artista grande, mesmo no início. Irreverência e originalidade na estética sonora. São esses os ingredientes que compõem um retrato de um cantor e compositor quando jovem. Tudo isso tem de sobra em “Vivo!”, terceiro disco de Alceu Valença, que projetou a sua carreira para todos os confins e o colocou definitivamente na galeria dos grandes nomes da música, sem sabotagens ou armações mercadológicas.

O ano era o de 1976 e existia um quadro de várias tendências no universo fonográfico no entremeio da década. As informações eram travadas, tanto pelo subdesenvolvimento das comunicações como pelo isolamento criminoso imposto pela tirania de Ernesto Geisel. Fora as inquietações, conformismos, exibicionismos e enlatados do quadro musical internacional, a situação era peculiar no Brasil: de um lado a música brega no auge, impulsionada pela opressão da censura; do outro a intriga entre a produção musical entreguista e ufanista contra a produção musical de resistência. Paralelo a isso existia um caminho alternativo por onde, entre outros, começavam a trilhar os novos nordestinos.

No início da década de 70 Alceu Valença já havia chamado a atenção com sua participação no filme “O Espantalho”, de Sérgio Ricardo, e pelas participações em alguns festivais, entre eles o “Abertura”. Apesar dos lançamentos de “Alceu Valença e Geraldo Azevedo” e “Molhado de Suor”, os dois primeiros registros em lp, o profeta das incoerências só apareceria de fato com “Vivo!”, gravado no teatro Tereza Rachel, durante a realização do show “Vou danado pra Catende”, lançado em vinil pela Som Livre, em edição de luxo, com capa dupla muito bem cuidada. Vendeu pouco, mas entrou para a história como uma verdadeira obra-prima.

Cocos, cirandas, emboladas, toadas, maracatus, aboios, cantorias e rock estruturam a parafernália provocadora de “Vivo!”. Tudo muito bem misturado e muito bem embalado numa estética sonora que definiria uma fusão repetida - por surrupiações, influências e falta de personalidade - milhares de vezes por diluidores espalhados por essa grande farsa que é o mercado fonográfico brasileiro. A irreverência, o sarcasmo, a ironia crítica e a poesia original, além de uma banda coesa e em grande momento, fizeram desse álbum uma verdadeira escola para muitos artistas. Aqui se aprende como se monta um repertório, como se veste, como se movimenta e como se toma conta de um palco.

A qualidade sonora não é lá essas coisas, mas deixa um enorme traço de honestidade. O disco abre com “O casamento da raposa com o rouxinol”, ponteada de início pela viola de dez cordas de Zé Ramalho, uma guitarra com leve distorção e fhase, e Alceu Valença anunciando o seu imaginário popular como um apresentador de circo. Baixo, bateria, percussão e flauta vão aparecendo aos poucos, fazendo uma cama enebriante, até chegar a um corpo sonoro, com riffs de guitarra e um vocal dramático. Abertura com personalidade, pra mostrar que o palco tem dono.

“Descida da ladeira” é um clássico da música alternativa. Parece um mantra, com trabalho competente de Paulo Lampião Rafael com o volume de guitarra. Essa ciranda modificada tem solos de flauta e muita ironia poética, em que Alceu Valença afirmando que “não acredita na força do vento que sopra e não uiva e que casca de banana é tobogã de fim-de-feira”, dá um recado todo especial aos oportunistas de plantão. Segue então “Edipiana n. 1”, música capaz de revolver o passado, o presente e o futuro. Essa é uma das mais inspiradas letras de Alceu Valença, emboladas, ironia e cinismo em forma de poesia. Ela começa lenta, criando um clima de aboio e busca uma carga dramática perfeitamente casada com o arranjo. Essa música tem um solo vocal histórico de Zé Ramalho e um vocal desesperado de Alceu no final. Imperdível.

“Você pensa” começa com uma violada de Zé Ramalho. É a mais rockeira do disco, com uma pegada forte de bateria e letra que reflete a vida dura do período. “Punhal de prata” é a junção de várias emboladas próprias e de cantadores tradicionais nordestinos. É o ponto máximo de interpretação de um show de um artista pronto para fazer história. É também um clássico. “Pontos cardeais” tem uma letra visceral, apontando para as necessidades urgentes: “Não quero essa boca / jorrando para dentro / palavras e gritos / e dentes e línguas...”. É também uma faixa climática, que vai num crescendo instigante.

Aparece então “Papagaio do futuro”, com apresentação peculiar e irônica de Alceu Valença. Essa não precisa comentar. Escute e tire as suas conclusões, como diz o autor. Imperdível. “Sol e chuva” encerra o disco de forma emblemática, voltando o show para onde começou, o imaginário popular imbricado com as coisas existenciais da modernidade. A viola também ganha destaque inicial, bem como a carga dramática do arranjo. Fenomenal. Esse é um dos discos que mereceriam o seu relançamento em vinil, não por saudosismo piegas, mas por questões históricas mesmo. Esse é um disco essencial.

A banda

Alceu Valença - voz, violão e violinha
Zé da Flauta - flauta transversal
Paulo Lampião Rafael - guitarra
Zé Ramalho da Paraíba - ukulelê, viola de 10 e 12 cordas, violão, vocais.
Israel Semente Proibida - bateria
Dicinho - baixo
Agricio Noya - percussão


TERRENO BALDIO REVISITADO

“Terreno Baldio” é o primeiro disco da banda paulista de mesmo nome. Lançado em 1975 pelo selo Pirata, com capa dupla, de luxo, revelando um certo tom de lisergia. A banda faz parte do chamado rock progressivo brasileiro e tem aquele estigma de muitas bandas: ou se gosta ou se detesta, aliás o que é bem típico das bandas progressivas. Atualmente, quando existe uma tendência de exumação de projetos musicais setentistas, que na realidade nunca foram enterrados totalmente, vale a pena passar esse Terreno a limpo.

O rock progressivo se tornou para muitos motivo de chacota ou até mesmo de escada, se quiser parecer antenado na roda, estiloso, fashion descolado, ou então o fodão mais bem informado da rede, numa sala de bate papo aí qualquer, basta meter o pau no rock progressivo, que os outros pastéis de vento vão coçar o queixo e vão dizer, pô, o cara saca meu, ó ai! No entanto, são pouquíssimos aqueles que realmente têm informação musical suficiente para entender e saber dimensionar o que é estética musical original ou o que é encheção de saco homérica.

Da mesma forma que qualquer outro segmento da música, o rock progressivo é cheio de gênios, de babacas insuportáveis e de artistas especialmente comuns, simples diluidores das verdadeiras criações. A banda Terreno Baldio é um pouco de cada um desses aspectos. De certa forma o grosso do rock brasileiro é formado por pastiches hilariantes, mas muita coisa boa aconteceu e pouco tem acontecido.

No caso do rock progressivo existem aqueles com maturidade criativa, como é o caso do disco “Corações Futuristas” de Egberto Gismonti, uma das maiores obras do gênero no mundo, em que você escuta talento e genialidade; bem como aqueles que tiveram que se dobrar aos ditames das gravadoras, em busca de alimentar o mercado com replicações, como é o caso de “Lar de Maravilhas” do Casa das Máquinas, em que você escuta competência e talento, mas também escuta cópias e clichês.

“Terreno Baldio”, o disco, faz parte da segunda vertente. A banda é formada por músicos excelentes, mas compromissados com um produto encomendado, que acabou tolhendo a criatividade das composições e arranjos, mas que é possível detectar em momentos e climas do disco. A banda foi saudada pela crítica e fãs como o Gentle Giant brasileiro. O que deveria ser um elogio na realidade é uma constatação de imitação, não de todo, mas que ela existe além da influência, ela existe.

As oito faixas do disco revelam traços predominantes do rock progressivo criado pelo Gentle Giant: com contra-pontos melódicos, escalas intercaladas, mudanças de andamentos, mudanças de tons, fragmentos de escalas, música minimalista e ecos de música medieval nos vocais e arranjos, além de um intenso diálogo entre a guitarra de Mozart Melo e os teclados de Lazarini.

Em determinados momentos é possível perceber as cores do jazz fusion, com grooves legais de baixo e bateria e improvisação de guitarra e teclados. Já nos momentos em que existe uma mistura do rock progressivo com a música de raiz brasileira é quando a banda se torna mais original e projeta esse disco para a história do rock brasileiro como uma verdadeira peça de aquisição obrigatória.

O vocal de Fusa é competente, afinado, com modulações difíceis, mas completamente sem carisma, frio como uma garoa paulista. Apesar de um certo tom conceitual de algumas letras, em torno do mote terreno baldio, exigido pela gravadora, existe um ar de infantilidade poética que é sem par. Esse é o ponto mais fraco do disco.

O disco abre com “Pássaro azul”, que contrariando a sombra do Gentle Giant, tem pegada e clima inteiramente Premiata Forneria Marconi, escute “River of life” do disco “Photos of Ghosts” do Premiata que você vai entender. A guitarra com phase de “Loucuras de amor” revela uma das melhores faixas do disco, que lembra os climas da banda Embrayo, com belo solo de Mozart. Outro destaque vai para as faixas “água que corre” e “A volta”, já dentro das influências do jazz fusion dos anos 70, outro groove bem legal, e com detalhes de guitarra bem legais.

Em “Quando as coisas ganham vida” existe a fusão do rock progressivo com ritmos nordestinos, muito legal mesmo. Essa vertente seria muito mais explorada no segundo trabalho da banda “Além das lendas brasileiras”. O Terreno Baldio teve uma versão remixada e remasterizada, lançada pela gravadora Rock Symphony, com embalagem luxuosa, com fotos da banda, letras em inglês e entrevistas dos componentes. Esse é um registro que vale a pena ter.

A banda

João Carlos Kurk (Fusa)- vocal, flauta e percussão
Mozart de Mello - guitarra
Ronaldo Lazzarini - teclados
Ascenção - baixo
Joaquim - bateria e percussão

terça-feira, 1 de julho de 2008






MUTATIS MUTANTES

Esse disco é a primeira divisão da célula criacional dos Mutantes. Depois de dois discos extremamente influenciados pela estética tropicalista e pela lisergia psicodélica via Sargent Pepper... dos Beatles, um lançado em 1968, intitulado Os Mutantes; e outro lançado em 1969, intitulado apenas Mutantes; o irreverente grupo paulista lança o seu terceiro disco, em 1970, intitulado “a divina comédia ou ando meio desligado”, assim mesmo em minúsculo e quilométrico, já bem mais maduro musicalmente e apontando para outros nortes.

As colagens musicais, os ruídos, as dissonâncias espaciais, as intervenções, as citações pop e as orquestrações de vanguarda de Rogério Duprat já não se faziam presentes com a mesma intensidade de antes. Com a prisão e o exílio seqüente de Gil e Caetano havia um prenuncio de fim do Tropicalismo e esse disco traduz um pouco disso. O início dos anos 70 anunciava também o fim do flower power e uma modificação no som vindo de São Francisco. Com o fim dos Beatles, mais do que necessário, outras bandas inglesas começavam a dar o ar da graça, renovando a musicalidade pop.

Depois de umas longas férias, após um intenso ano de participações em festivais e shows no exterior, Os Mutantes aparecem renovados e com nova formação, agora com Dinho e Liminha definitivamente como integrantes. A mudança foi muito benéfica. O humor e a ironia corrosiva voltaram com a carga toda, agora sobre um tapete sonoro muito mais consistente e um guitarrista muito mais presente. A sonoridade havia mudado como também havia mudado a estética dos textos, bem mais ousados e bem mais contestadores naquilo que os incomodavam mais.

Se em 69 existia um patrulhamento ridículo contra a rebeldia elétrica do rock, chegando os instrumentos elétricos serem proibidos nos festivais, como sempre a burguesia é burra e a classe média paquiderme, eles voltaram muito mais rockeiros ainda, com o volume no talo. Agora era possível perceber que eles faziam perfeitamente o perfil de uma má companhia. Os puristas tremeram com a versão anárquica de “Chão de estrelas”, um clássico da velha guarda. Para completar a quebra de tabus o disco ainda trazia uma ode psicodélica ao coisa ruim, a hedonista e satírica “Ave Lúcifer” e uma carnavalização sacra com a esquisita “Haleluia”, uma espécie de fusão rockeira entre o sagrado e o profano.

Se existia um moralismo aniquilador, causado pela histeria sado-militar, eles voltaram ainda piores, agora incitando o amor livre, na irônica “Quem tem medo de brincar de amor”, com Rita Lee cantando com sotaque americano, além de uma capa transgressora, aloprada, com uma adolescente nua descendo aos infernos, por uma tumba aberta, sob os olhos de dois sacerdotes, sabe-se lá de que credo. Essa intertextualidade com Dante faz menção àquilo que se teria como demoníaco naquele Brasil totalitário, com grande parte da igreja apoiando a ditadura. Na contracapa Rita Lee está em uma cama entre os dois irmãos, dando a entender que estão nus debaixo dos lençóis, ao lado está Dinho como se fora um guarda-costas, vindo diretamente de um campo de concentração alemão.

Duas baladas fenomenais e uma sátira se encarregaram das vendas razoáveis do disco, a insinuante “Ando meio desligado”, e a irônica “Desculpe, Babe”. “Hey boy” é uma sátira ao padrão de consumo machista da burguesia paulista, que faz do carro uma extensão do falo, com uma instrumentação woo bop, bem anos 50.A versão de “Preciso urgentemente encontrar um amigo”, um meio sucesso e um meio protesto de Roberto e Erasmo Carlos, é simplesmente impagável.

As provocações sonoras aparecem com as geniais: “O meu refrigerador não funciona”, um blues modificado, com uma letra em inglês sugerindo uma necessidade sexual fora do normal, cortada bruscamente pelo estranhamento do verso universal da necessidade pós capitalismo industrial, que dá título à música; “Jogo de calçada” é um rock com várias mudanças de andamento e uma guitarra agressiva, cheia de fuzz; “Oh! Mulher infiel” encerra o disco com a irreverência sonora de sempre, agora com um instrumental bem mais rockeiro e uma guitarra solando em uma cama de distorção e trêmulo, preparando o terreno para os próximos discos: “Jardim Elétrico” e “Mutantes e seus Cometas no País dos Baurets”.

1970 foi o ano do glorioso tri campeonato mundial no México, o ano da famigerada campanha fascista de amor à pátria: Brasil ame-o ou deixe-o. Foi também o ano em que Dom e Ravel apontaram o dedo com a infame música “Você também é responsável”, além de muitos outros acontecimentos significativos e infames, que não cabem ser discutidos aqui por motivo de espaço. Mas foi também o ano em que os Mutantes meteram o dedo na ferida do moralismo católico-totalitário da sociedade brasileira. Meteram e foi sem vaselina.

A banda
Arnaldo Baptista - teclados, baixo e voz
Rita Lee - voz, percussão e efeitos
Sérgio Dias - guitarras, baixo e voz
Arnolpho Lima Jr. (Liminha) - baixo
Ronaldo P. Leme (Dinho) - bateria