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Crato, Ceará, Brazil
Um buscador, nem sempre perdendo, nem sempre ganhando, mas aprendendo sempre

domingo, 28 de dezembro de 2008

O daguerreótipo

Para Valquíria foi fundado
O imediato monumento movediço
Entre o nascer e o pôr do sol
A narcose da história provisória
Construía e desconstruía em devoção
Laços de lascívias civilizadas
Em uma linha de produção impecável
Com referentes empacotados em pactos
E signos enlatados em latências
Com prazo de validade estável

Ela não quis e preferiu um
Canteiro de obras que imanava
Corredores e intumescia o derredor
E fazia chover gasolina em um pasto deposto
Nas retinas opostas das vacas canonizadas
Vapores moviam motores em
Diacronia e sincronia placentária
Ela contemplava esse novo atavismo
E ofertava os resíduos para sua prole
Em um templo erguido na sala de estar

Ela não quis e preferiu combater
A solidão com a solene transição
Dos metais preciosos para o cartão de crédito
Com a degradação dos degraus a
Linguagem tornou-se autônoma e surgiu
A necessidade de venda para os olhos
Para um sono tranqüilo surgiu antagônica
A necessidade remarcada do escuro
Tudo precisa ficar imóvel entre a
Mobília e a paisagem imobiliária


Poema dedicado a Dihelson Mendonça
Um conhecedor transcendental da
linguagem secreta da música

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008


Crônica da Cidade Imóvel

Agora, com esse nevoeiro próprio do período chuvoso, é possível o viajante vislumbrar, em descendo a Chapada do Araripe, a cidade do Crato flutuando em meio às nuvens, com uma imensa âncora pendendo de uma das suas extremidades. Para o viajante mais atento, é possível perceber, acima daquela cidade que flutua, um reflexo difuso, como em negativo, de outra cidade, como se ali existisse um espelho côncavo permanente. Agora aquele viajante que realmente descer a serra e adentrar no âmago da “Princesa do Cariri”, descobrirá que no solo, prenunciando o obscuro, existe outra cidade do Crato.

O Crato é uma cidade prima-irmã da cidade de Laudômia, trazida a lume pela mente brilhante de Ítalo Calvino, no livro “As Cidades Invisíveis”. Assim como o Crato, Laudômia são três cidades em uma, uma dos não-nascidos, uma dos mortos e outra dos vivos. Assim como em Laudômia, no Crato, as três cidades são interligadas, elas interagem de forma que existe uma permanente ilusão de que não existe em hipótese nenhuma a possibilidade desse intercâmbio existencial. Essa ilusão é tão poderosa que cria a estranha sensação de uma cidade única, poderosa, gloriosa, onipresente, completamente alheia à intensa convivência com a cidade dos mortos e a cidade dos não-nascidos. Convivência essa que se dá simultaneamente.

A cidade dos vivos, no Crato, se desprendeu da sua essência transbordada de primazia, no solo, e agora flutua bela e transcendental, por sobre uma arquitetura cinza, inebriada pelo marrom paralisante do conforme e da linhagem. O Crato essencial é uma cidade deveras ocupada, que trabalha incessantemente na manutenção e expansão do material ferroso que dá peso e significância à imensa âncora atrelada a uma das extremidades do Crato, a cidade dos vivos, que flutua, pairando indelével sempre na estranha possibilidade do seria.

A usinagem dessa âncora é feita ostensiva e orgulhosamente. Na cidade dos mortos, a essência da tradição, da família e da propriedade tem a seu dispor residências, repartições públicas, entidades privadas, fundações sócio-culturais, confrarias inusitadas e uma série de outras segregações mantenedoras da ordem, que fornecem material necessário para a usinagem desse inconsciente coletivo, logo transformado em material de largo poder de imobilização, devido ao seu peso irrefutável.

Nessa cidade mórbida existe uma eterna veneração pelo passado, existe uma entronização do tradicionalismo de forma que todo o formol produzido no mundo parece sair dessa cidade. As moedas de troca na convivência social do Crato essencial é a linhagem genética, são os títulos de propriedade e de formatura, bem como as senhas distribuídas na partilha do poder, em que só a alguns é dado a abrangência de compra da mercadoria mais barata que existe nessa cidade, o voto. Essa cidade tem a redoma opaca da religiosidade, legitimada pela presença suprema do bispado, para encobrir os escândalos políticos, econômicos, históricos, privados, públicos e notórios dos seus orgulhosos habitantes, nobres faladores da vida alheia.

A cultura dessa necrópole está fincada nos rincões do Parnasianismo, onde reinam solenes Olavo Bilac e Rui Barbosa, com suas formas fixas patéticas e suas retóricas de bodega nobre. Sua concepção de cultura ativa é a concepção arcaica e achatada dos museus-velórios. Seus atos heróicos foram embalsamados no sorumbático período imperial. Suas referências de dinamismo estão enquadradas em pergaminhos cartográficos, da época do descobrimento. Seus livros são empoeirados e suas músicas foram preservadas em pianolas francesas, com todo o respeito à Inglaterra, para que não se crie aqui um pastelão melodramático, com a corte portuguesa como anfitriã bufona. Mas todos são de boas famílias, com tradição e credo confirmados.

Subindo pela âncora imensa em sua capacidade de estagnação, não como ratos excluídos desse esquematismo, fadado às bordas, mas sim como um rebelde em progressão invasora, o viajante se depara com o Crato que flutua, vivo, mas dormente em sua dolência induzida. Aqui a cultura é plural, embora imberbe, pois existe uma força provinda da manutenção, que impede vôos mais altos, apenas flutuações. Aqui a economia é furtiva, aos poucos a manutenção está perdendo as forças e está sendo implodida, mas o comércio, em alguns pontos, ainda fecha para o almoço e o que vem de fora tem mais valor, pois é assim desde o princípio, a cidade mórbida nunca produziu nada, uma vez que a renda é pública e o vilipêndio é um ato de esperteza. O Crato que flutua é universitário, mas não é pesquisador e nem cientista, é professor, que é chamado de tio, mesmo sendo doutor. É advogado, que é chamado de doutor, mesmo sem encontrar respaldo legal para isso. É médico, que é chamado de doutor, mesmo sem ter nem mestrado.

O Crato que flutua vive no cartão de crédito e no cheque especial, mesmo sendo tido como abastado. Mas é nessa cidade que existem aqueles sem tradição, sem propriedade e sem família, mas que vivem honestamente, que trabalham, que estudam, que pensam em mudar o futuro, que querem deixar as suas marcas, mesmo sendo confundidos com ladrões, com descuidistas, com estelionatários. São grandes homens e grandes mulheres apequenadas pelo peso aniquilador da tradição, que não reconhece seus filhos bastardos. O Crato que flutua tem grandes escritores que não são lidos, tem grandes compositores que não vendem discos, tem grandes atores e diretores que não são assistidos, tem grandes artistas que não são reconhecidos. É esse Crato que é famoso no mundo inteiro pela sua cultura popular e pela riqueza natural de suas encostas.

Ou seja, o Crato que se vê, com uma grande âncora pendurada no pescoço, vive de aparências, pois o Crato essencial suga todas as forças, para poder manter viva a tradição. Já o Crato dos não-nascidos, aquela que vive de reflexos, é uma grande piada. Ela é a projeção das frustrações incontidas do Crato essencial, que imagina ser uma cidade poderosa, incólume, impávida, heróica, vitoriosa, nobre e diletante. É a utopia filosófica do que é sem jamais ter sido. É um grande jardim em que os pavões jogam xadrez e as ninfas bufam essências delicadas. O viajante que desce a serra e vislumbra a cidade que flutua, jamais reconhece de imediato os seus desdobramentos. Só se beber da sua água misteriosa.


Labiata
A permanência de Lenine

Todo o espaço conquistado pelo compositor pernambucano, Lenine, está confirmado com o lançamento do seu novo disco, “Labiata”. Está confirmado com estilo, com elegância, com a apologia certeira de que o menos é muito mais e de que nada vale o virtuosismo se a criatividade e a originalidade não são suas guias. “Labiata” não é coisa que se finda, é coisa que se ilumina lentamente, ao sabor do devaneio, com ou sem trocadilhos.

Diz Lenine que o nome é de uma orquídea, em entrevista para Anderson Dezan, do site de notícias Ultimosegundo, ele afirma: “Três coisas me impressionam neste tipo de orquídea. Em primeiro lugar, a beleza da flor, sua exuberância. Depois, a diversidade da ocorrência dela. São mais de 40 mil espécies espalhadas pelo mundo e é possível encontrá-la no meio do deserto da Austrália, como no Tibete. Em terceiro lugar, a resistência. Ela tem essa capacidade de ser uma flor delicada e robusta. Esses três significantes permeiam o que é a música popular brasileira: a beleza, a diversidade e a resistência”.

“Labiata” é o oitavo disco de Lenine e o primeiro de estúdio, depois de dois discos ao vivo: MTV acústico e InCité; e de uma trilha para balé Breu, encomendada pelo Grupo Corpo. Duas peculiaridades acompanham esse novo trabalho, o lançamento simultâneo em vinil e a composição integral das músicas feita em estúdio, em pleno período de gravação. Além disso, vale ressaltar a produção requintadamente equilibrada de Jr. Tolstoi e a manutenção da banda base do último disco, com o caririense Pantico, na bateria e Jr. Tolstoi, nas guitarras, efeitos e intervenções; mais o baixo de Guila.

O disco tem as participações super especiais do Quinteto da Paraíba; de Pedro Luís e A Parede; Arnaldo Antunes, em uma expressão sonora e parcerias; Carlos Muñez; e China. Além disso, os três filhos de Lenine fazem vocais na faixa que fecha o disco, “Continuação”, uma das duas músicas de autoria total de Lenine, a outra música é “Martelo Bigorna”, que abre o disco. As outras composições, todas inéditas, Lenine divide com velhos parceiros, como Lula Queiroga, Bráulio Tavares, Dudu Falcão e Paulo César Pinheiro. Dentre essas parcerias existe uma póstuma, com Chico Science, “Samba e Leveza”, dedicada a Goretti, irmã de Chico, que viabilizou a parceria.

O estilo é o mesmo, harmonias dissonantes e levada sincopada, com melodias simples em cima de letras espertas, distantes dos imediatismos de mercado que empesteiam a crise institucionalizada da música popular brasileira. Os traços rockeiros de Jr. Tolstoi permanecem em sua pegada visceral e extremamente contemporânea. Aliás, Jr. Tolstoi é o sideman que qualquer cantor ativo e renovado precisa. Ele é senhor de sua parafernália de efeitos e sabe como poucos guitarristas da nova geração, fazer uma cama de texturas para que a base flua, com peso e delicadeza ao mesmo tempo. O trabalho desse guitarrista esperto, com pedal whammi, na faixa “O céu é muito”, parceria com Arnaldo Antunes, é eficiente, técnico e criativo.

Em seu trabalho de produção, Tolstoi deu a medida exata ao violão de Lenine e fez com que o cantor pernambucano também tocasse guitarra, com timbres limpos descolados. Mesmo nas faixas mais acústicas, que tiram o sono de qualquer produtor, Tolstoi manda bem nas captações e mixagens. As levadas funk das composições de Lenine, também foram bem tratadas, com a cozinha recebendo o devido destaque. Ao longo do disco, Tolstoi utiliza-se de filtros diversos, delays, compressores e reverbs bem dosados, sem a crueza patética de alguns discos indies e sem a plastificação de magazine de alguns discos atuais da MPB.

Os destaque ficam por conta das faixas “Martelo Bigorna”; “A Mancha”, com excelente letra de Lula Queiroga; “O céu é muito”, “É fogo”, tremenda levada; “Ciranda praieira”, extremamente climática, com intervenções, ruídos e efeitos de whammi na guitarra de Jr. Tolstoi; e a excelente “Excesso exceto” , o casamento perfeito entre o peso e a leveza, uma das poucas letras em que Arnaldo Antunes se livra do marasmo eterno do seu eterno nominalismo. Esse é um disco raro em meio a tanta porcaria lançada no mercado, visando as vendas de fim de ano.

O dioptro

Existe um terreno baldio
Nos confins do destino
Onde os pórticos esfarelam
E os arrimos atrofiam

Só alguns peregrinos
Conseguem encontrar lá
Mapas desidratados e
Cajados evolvidos de válvulas

Não há lá cognição
Mais pesada que o ar
É preciso então evaporar
Da alma desejos e dejetos

Eponina esteve lá e lá
Desenvolveu a sublime arte
De extrair as sombras que
Torturam a luz dos candeeiros

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008


As cidades Invisíveis – Ítalo Calvino
A arquitetura da linguagem

Se você está em busca de novos ares e pretende reformular o seu manual de sobrevivência no imensurável entulho de informações descartáveis que bombardeiam sua vida cotidianamente, o livro “Cidades Invisíveis”, do escritor italiano Ítalo Calvino, é uma das saídas mais honrosas que se tem notícia nos infindáveis subúrbios decadentes das artes contemporâneas.

Calvino morreu no dia 19 de setembro de 1985, na cidade de Siena, na Itália, aos 61 anos, de hemorragia cerebral. Apesar de falecido precocemente, o legado artístico desse que é um dos maiores intelectuais do nosso tempo, está mais vivo do que nunca, está próspero em seu caminhar para a eternidade. O descomunal da obra desse humanista italiano não está no tamanho, mas na inventividade, na arte indelével de manipular os signos lingüísticos e perscrutar o inusitado dentro das perspectivas existenciais humanas.

Calvino começa a sua trajetória literária dentro do neo-realismo, ainda sob influência de dois dos maiores escritores italianos dessa tendência, Cesare Pavese e Elio Vittotini, bem como tendo como fluxo literário as suas experiências como combatente na Segunda Guerra Mundial, quando integrou a Resistência Italiana, contra o fascismo. Ao longo da sua existência, e já como um sofisticado discípulo de Jorge Luís Borges, Calvino mudará radicalmente a sua estética literária, mas jamais perderá a História como a sua principal referência, seja a História próxima ou distante. É dela que ele extrairá os seus substratos existenciais, imaginários, mitológicos, simbólicos e fantásticos.

Ítalo Calvino é daquela linhagem de escritores que considera a linguagem como um meio e não como um fim. Nada em seu texto é bastardo. Nada em seu texto é compromissado com a uniformidade, da mesma forma que em seu discurso nada é casual. Ele é um autor com ramificações estilísticas dentro dos conceitos do realismo-fantástico, do realismo-maravilhoso, do realismo-mágico, do surrealismo e do historicismo livre das narrativas contemporâneas, em que a simbiose entre história e ficção acaba gerando o fragmentário, o descontínuo e o impávido estranhamento da desconstrução narrativa.

O livro “As Cidades Invisíveis” tem tudo isso e mais ainda o encantamento próprio da oralidade medieval. Não é romance. Não é conto. Não é crônica e nem poesia, é um entrelaçamento narrativo, sem limites de nenhuma espécie. É aquilo que Genette conceitua como hipertextualidade, um eterno revolver de textos em um único e interminável texto. Inevitavelmente paira sobre “As Cidades Invisíveis”, bem como outras obras de Calvino, como em “Se um viajante numa noite de inverno “e “O castelo dos destinos cruzados”, a marca inconfundível deMil e Uma Noites “, de Sharazade.

Tendo como fragmento de personagens Kublai Khan e Marco Polo, Calvino arquiteta o seu discurso tendo como argumento as descrições de várias cidades feitas por Polo a Khan. O livro tem como tema se divisões: As cidades e a memória; as cidades e o desejo; as cidades e os símbolos; as cidades delgadas; as cidades e as trocas; as cidades e os olhos; as cidades e o nome; as cidades e os mortos; as cidades e o céu; as cidades contínuas; e finalmente, as cidades ocultas. Cada cidade tema tem cinco descrições, que por suas vezes são entrecortadas com diálogos etéreos e descontínuos entre Polo e Khan.

Parece tudo muito justo e muito planejado. No entanto, o que brota dessa moldura não tem nenhuma ligação com o estático, o leitor mergulha de forma ilimitada em um universo filosófico de existências, de vidas, de experiências, de objetos, de utensílios, de víveres, de afetos, de memórias, de tensões, de alusões, desilusões e projeções supremas para a libertação do espírito e do corpo, jamais visto na literatura, não da forma proposta por Calvino e sua mágica com as palavras. Eis o reino da transmutação. O símbolo tanto controla como descontrola qualquer enunciado.

Verdadeiramente o viajante italiano foi contratado por 17 anos pelo grande imperador mongol Kublai Khan, como embaixador do seu império. Marco Polo e sua trupe, a serviço do grande Khan,fundador da dinastia Yuan, na China, percorreram a Tartária, a China e a Indochina, fazendo então relatos minuciosos de todas as suas incursões. São esses relatos que entraram para a história. Calvino aproveita essa deixa da história e cria uma das mais instigantes obras de ficção do nosso tempo. Simbolicamente todas as cidades descritas por Polo têm nomes de mulheres. Cada uma com sua peculiaridade, cada uma com seu segredo, cada uma com seu desdobramento surreal.

As cidades de Ítalo Calvino são completamente diferentes das nossas, elas contém o imponderável e as possibilidades impossíveis da existência e da convivência. Laudômia, por exemplo, são três cidades em uma, uma dos não-nascidos, uma dos mortos e outra dos vivos. Em Eufêmia se troca de memória em todos os solstícios e equinócios. Em Melânia, toda vez que o viajante vai à praça ele se depara com fragmentos de diálogos, que mudam de acordo com as visitas. Em Leônia, quanto mais a cidade expele coisas, mais ela acumula coisas. Eutrópia não é apenas uma cidade, mas todas, sendo que apenas uma é habitada, as restantes são desertas. Já em Bersabéia existe a crença de uma outra Bersabéia suspensa no céu, onde gravitam os sentimentos e as virtudes mais elevadas...

Para qualquer viajante estelar das letras, essa é uma parada obrigatória. Aqui você renova os ânimos, recarrega o que tem que ser carregado e recolhe os mapas secretos das mais importantes trilhas do mundo, do submundo e do supramundo. Seja bem vindo e não dê satisfações de onde você vem e para onde você vai, o que importa é viajar.

A ânfora

O pior dos desertos
É aquele que tem um outro
Deserto dentro dele

Um apaga os rastros
Esculpidos no outro com um
Vento que evoca invólucros

Assim o término de um
Labirinto é o início de outro
Que tende para o infinito

O pior desses grãos arremessados
É que eles lapidam como lixas
Que dissecam os sentidos

Diante dessa imensidão
Que se move para o devaneio
É impossível não lembrar Estamira

Que não salivava
Que tinha o estranho dom
De embalsamar palavras

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O Elmo

Conta-se com o
Barulho e a infidelidade
Das apostas feitas

Conta-se com o
Constante revolver
Dos prognósticos

Daí a sisudez ao incluir
Ou excluir tudo aquilo
Que se invade ou se evade

Mas não há lógica
Em desbastar o sumo
E empilhar os resquícios

Assim se debulhavam
Por entre a velha prótese
As palavras de Adalgisa

Já quaravam no anil
As palavras antes de ela ser
Rezadeira por dádiva

Quando ela ainda flutuava
Na força volátil do orvalho
Bem antes de existir

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O astrolábio

Desta vez
Eu conheci Zulmira
Que se debatia em convulsões
No chão da cozinha

Depois os cabelos
Amornados pelo fulgor
Depois o olhar sereno
Pousado sobre os subjetivos

Desta vez
O retorno se dera
De solstícios e equinócios
Deveras impronunciáveis

Havia percebido que um
Cemitério de falas mortas
Não é o silêncio ainda
O que muda não é a memória

terça-feira, 9 de dezembro de 2008


A Viagem do Elefante – José Saramago
Um mestre conta uma história

Depois de tantos anos com uma idéia na cabeça, desde 1999, Saramago entrega ao público uma viagem inusitada, cheia de ironias vigorosas, nada vigaristas, e sempre atravessando seus alvos com travessões travessos, questionadores da mormência histórica, obstinada em empilhar fuligens racionais por sobre os devaneios reais dos seres humanos em pleno absurdo da existência.

A idéia dessa narrativa surgiu quando ele almoçou em um restaurante de Salzburgo, na Áustria, chamado O Elefante, a convite de Gilda Lopes Encarnação. Neste restaurante algumas pequenas esculturas em madeira chamaram a atenção de Saramago, que logo ficou sabendo que eram representações de edifícios, que demarcavam a longa viagem de um elefante, de Lisboa a Viena. Nascia ali um conto singelo.

A narrativa se baseia na manobra diplomática envolvendo o elefante Salomão, que no século XVI, mais precisamente em 1551, cruzou metade da Europa, de Lisboa a Viena, dado como um presente, embalado como um golpe baixo e conduzido como uma esfinge. Dom João III, rei de Portugal e Algarves, casado com dona Catarina d’Áustria, resolveu oferecer ao arquiduque austríaco Maximiliano II, genro do imperador Carlos V, como presente de casamento, o elefante, muito menos por se tratar de uma imensidão, do que pelo tamanho maior da desculpa em não recebê-lo.

O livro levou cerca de dez anos para ganhar forma e foi escrito durante o período em que o escritor maior da língua portuguesa estava acometido por uma estranha e impertinente doença respiratória. O próprio autor achou que não escaparia e a narrativa ficaria inacabada. Mas, para o bem geral do povo culto, Deus disse que ele ficaria mais. Assim podemos conviver com mais esse filho da família Saramago, dona de uma linhagem astuta, elegante, provedora de signos e ironias, para além das habilidades técnicas da escrita, já nos domínios das esferas infinitas.

De acordo com Pilar del Río, mulher de Saramago, o autor entende essa narrativa como um conto e não como um romance. De fato, essa é uma deliciosa história contada ao pé da fogueira em um quintal vizinho. No entanto, nem de longe essa é uma obra pequena, claro que sem o fôlego de um O Evangelho Segundo Jesus Cristo, mas com o encantamento de Uma Jangada de Pedra. A técnica é de um exímio esgrimista em duelo indefinido com as palavras, com a planta dos pés postada no fio da navalha da criação.

A estética é nominal, leva a assinatura da contemporaneidade da obra de José Saramago, singular e plural, dialética, incontida em suas junções e disjunções, em suas diacronias e sincronias. A fusão entre história e ficção é uma das grandes janelas que arejam os ares da cansada literatura universal. Saramago é um dos seus mestres. É um duende que extrai de datas,decretos, de formulários e de protocolos, o sangue humano em sua mais sofisticada inventiva existencial.

Saramago fundamenta a história de Salomão, o elefante presente, e de seu conarca, o indiano Subhro, na mais pura metalinguagem, em que um narrador, que oscila em ser às vezes sim e às vezes não, observador, destila uma ironia fina sobre o ato da poética, sobre os valores da significação e sobre as intenções da escrita. O humanismo do teatro universal de Saramago está em todas as linhas, redimensionando os seres vivos, os mortos e os ressuscitados. As entranhas da convivência humana são revisitadas mais uma vez, como sempre, em tom quase que anárquico.

A forma como Saramago trata as formas do discurso continua a mesma. As falas são anunciadas apenas por maiúsculas, após vírgulas ou pontos. Os parágrafos são imensos, com imensas frases entrecortadas por imensas vírgulas. Agora as maiúsculas só aparecem para fundarem uma nova frase ou indicar uma fala, e não mais do que isso, todas as necessidades do uso delas está descartada, exceto as citadas. Existe um quê de descontinuidade e fragmentação no discurso poético de Saramago. Ele constrói para desconstruir, convidando o leitor para participar de seus estranhamentos específicos. Não podia faltar um toque de absurdo e de fantástico, senão não seria uma saga de Saramago.

Da mesma forma não poderia ficar de fora a abordagem especial que ele faz da estrutura caricatural da família real portuguesa, com seu ar infinitamente beócio, com suas digitais decadentes e seus rastros indolentes fincados no molde absconso da história. A burocracia patética do Estado português também recebe as suas devidas considerações irônicas. A igreja também é referenciada em seus mecanismos de burlas e dominações nefastas.

Entre tantos protagonismos da saga da comitiva, o episódio em que o elefante Salomão é obrigado a forjar um milagre, ao se ajoelhar frente à basílica de Pádua e frente a inúmeras autoridades do clero, para combater a expansão do luteranismo, é um caso à parte. É tão hilário quanto contundente o leitor se deparar com o livre comércio dos pelos do elefante como relíquias.

Assim conta o narrador, com ironia corrosiva, “Solimão (o elefante muda de nome ao chegar às mãos do arquiduque) recebeu em troca uma generosa aspersão de água benta que chegou a salpicar o conarca lá em cima, enquanto a assistência unanimemente, caía de joelhos e a múmia do glorioso santo Antônio estremecia de gozo no túmulo.” Esse é apenas um pedacinho dessa deliciosa jornada. Descubra você mesmo ela por inteira. Ela é encantada, como tudo que sai da imaginação desse fenômeno chamado José Saramago.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Dos hemisférios

Vou confessar
confesso que o farei
mas sem muita convicção
vou abrir o coração
talvez a mente não
pois ela mente
é cheia de demências cotidianas
gosta de elaborar fronteiras
e me meter dentro de extensões
que mais parecem caixas
dentro de outras caixas
sem consentimentos
apenas formadas por formulários
de alfândegas lotadas
de funcionários corruptos
assim tanto é que estive tão ausente
ocupado com minhas perdas
com braças e braças de terras ausentes
que já não fazem parte dos meus domínios
que me fazem sentir um retirante dentro de mim
que me fazem sentir que o meu sofá já não mais me pertence
como o velho computador que
sente ir embora as vogais
e vê o sistemático plano das consoantes
se entramelar entrementes
já o livro de Saramago
com a viagem do elefante Salomão
ainda me olha vislumbrado
já os beijos para os filhos
são imediatos como pés de patos
já os beijos para a amada eterna
resolveram estrelar um número novo nos trapézios
voam com os seus e os meus limites

Esse poema faz parte do livro inédito
"Manual de sobrevivência para astronautas"
e é dedicado a Carlos Rafael e Domingos Barroso