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segunda-feira, 20 de abril de 2009






Estômago
Um filme para quem tem fome de arte

As locadoras acabaram de receber a versão para DVD de uma das mais elaboradas películas do cinema nacional. “Estômago” não funda nenhum movimento, não trai nenhum movimento, não desconstrói nada, não apresenta nenhuma alternativa nova para o mercado Cult, é sem mirabolâncias ou invencionices iridescentes, apenas resgata a narratividade do cinema. E é justamente aí que reside a genialidade dessa verdadeira obra de arte.

Longe da merdologia global, do engajamento social, das soluções cretinas dos efeitos especiais, bem como do pseudo historicismo panfletário que povoam os editais públicos e privados do país da corrupção, “Estômago” nasce como o recrudescimento da verdadeira arte cinematográfica brasileira, sem se quedar ao provinciano ranço fáustico do: “tem que ser mambembe para ser genuinamente brasileiro”.

Essa é uma produção bi-nacional, brasileira e italiana, um canal oficial de cooperação tecno-artística pouco utilizada pelos produtores brasleiros. É uma realização das produtoras Zencrane e Indiana, brasileira e italiana, respectivamente. O filme tem a excelente direção de Marcos Jorge, que estréia em grande estilo, construindo uma carreira premiada, reconhecida pela sua capacitação profissional e pela sua legitimação artística.

“Estômago” nasceu de um conto de Lucas Silvestre, roteirista, e narra a saga epifânica de Raimundo Nonato, existencialmente transformado em Alecrim. O enredo é magistralmente bem modelado em sua simplicidade e magnificamente complexo em sua alegoria crítica da decadência dos valores universais. “Estômago” não nega as suas filiações felinianas e do Realismo italiano como um todo, mas não se apropria indebitamente de nenhuma estética.

Apesar de transitar pelos conceitos e limitações do Neo-Ralismo e do Neo-naturalismo, a direção e o roteiro fornecem identidade ao filme. A breve epopéia de Raimundo Nonato é engrandecida ainda mais pela espetacular atuação de João Miguel, o mesmo que estrelou “Cinema, aspirinas e urubus”, “O céu de Suely” e “Mutum”, entre outros. Com a presença grandiosa de Fabíola Nascimento, no papel da prostituta Íria, o enredo navega em sua semiologia do desejo humano.

Não espere um filme sobre receitas e pratos delicados. A ironia corrosiva do enredo extrapola, projeta para além do amor e da morte a trajetória trágica desse anti-herói brasileiro. A épica de Raimundo Nonato é contada em dois momentos, que se completam e se desdobram. Mas a metáfora do alimento que saciará a fome dos desejos, não é só dele, é nossa também. O canibalismo de Raimundo é a própria transmutação selvagem da libido pós-moderna, que fornece instrumentos e aparelhamentos para a sofisticação da nossa decadência mais profunda.

O enredo de “Estômago” é tão bem arquitetado que eu corro o risco de quebrar o grande barato de assisti-lo. Mas vale a pena aqui ressaltar que é através da culinária que Raimundo Nonato cria o seu decadente reduto de poder. Ele percorre os ritos de passagens em que o transformam em Alecrim com a suprema ironia do encanto e desencanto. O crescendo da trama é cheio de implicações interpretativas, que vão da sutileza da combinação das cores do ambiente e do figurino até a carga dramática reveladora da mais animalesca natureza humana.

É muito gratificante perceber como ainda é possível utilizar a arte para criticar a bestialidade humana. A comida aqui é a alegoria da usinagem humana que transforma a sagração da existência em excremento. Não é aleatório o fato de “Estômago” começar com um close na boca de Raimundo Nonato e terminar com outro close no seu traseiro. Aliás, nada é aleatório nessa obra de arte. Desde a trilha sonora do discípulo de Enio Morricone, Giovanni Venostra, passando pelos ambientes claustrofóbicos, até aos gestuais próprios dos nichos sociológicos apresentados, está perfeitamente interligado à epifania de Raimundo Nonato.

Algumas cenas de “Estômago” já fazem parte da novíssima antologia da novíssima geração de cineastas brasileiros, que vieram como uma falange, espantar de uma vez por todas, a falta de técnica, a escassez de temáticas, e a inoperância estética de velhas figuras carimbadas do cinema nacional, que se tornaram órfãos da criatividade após as quedas da ditadura militar, do muro de Berlim e das torres gêmeas.

quarta-feira, 15 de abril de 2009


Patativa do Assaré - Ave Poesia
O dito pelo não dito


Patativa do Assaré já não se pertence mais, o materialismo histórico já providenciou o esvaziamento de sua propriedade. Até mesmo a obviedade canastrona das metáforas do homem pássaro e da poesia alada já perdeu o protocolo de posse e grilagem. Sobre o ícone histórico de um dos maiores poetas brasileiros paira uma solerte sombra de reforma agrária do seu legado poético, em que o aparelhamento de sua imagem e do seu prestígio atende aos mais diversos fins, como se a história fosse um pano de cozinha capaz de ser retorcido ao extremo. O documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry, é um exemplo desse processo de reificação do poeta.

Ao término da exibição do filme, a sensação que o espectador mais desavisado tem é que Patativa do Assaré só não fez parte da resistência armada contra a ditadura militar, em grupos como o MR-8, VPR ou VAR-Palmares, por puro capricho do destino, que em espetaculosa chantagem emocional existencialista o transformou em um poeta cantor do pathos das vítimas da exploração latifundiária e da escravidão capitalista, ainda reservando uma canonização heróica, dentro da mais pura utopia romântica revolucionária. Reduzir a esse patamar a vida e a obra de um dos mais profícuos poetas do século XX é tentar engarrafar mil rosários, trezentas enxadas, oitocentas rabecas e mais trinta mil chapéus de palha, em uma garrafa pet e vender como souvenir em um congresso de um partido populista de esquerda qualquer.

O cineasta Rosemberg Cariry não consegue ultrapassar as fronteiras amareladas do Cinema Novo e sua concepção nacionalista de que o homem novo surgiria messianicamente do seio do povo, das entranhas das raízes populares da cultura, o único portal cósmico capaz de formatar a verdadeira identidade brasileira. Essa postura ideológica de esquerda, às vezes festiva, de encontrar a legítima essência brasileira a partir de uma celebração inconteste das camadas populares e suas respectivas culturas foi fomentada e sedimentada principalmente nas fileiras dos Centros Populares de Cultura, do Partido Comunista, e da célebre Revista Civilização Brasileira, entre 1968 e 1978, através de artigos de autores da resistência intelectual como Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Ferreira Gullar, entre outros. A partir daí nasceram e cresceram as inúmeras diluições sectárias do herói brasileiro, ora com fundamentações marxistas-lenistas, ou maoístas, ou trotskistas, ou de outras vertentes mais incautas ou mais caricaturais.

Por um lado, algumas idiossincrasias chamam a atenção nesse documentário, às vezes pela ironia da própria história desapropriada, às vezes pela ironia apropriada pela própria história. De fato existe esse aspecto de crítica social na obra do maior poeta cearense, vivo ou morto, com ou sem recompensa. Não há como refutar isso. Mas também é fato que a trajetória literária e existencial do poeta é muito maior e muito mais diversificada, é um trem com diversos vagões e diversas estações, nem sempre concatenadas com esse ideário criado para ele, como uma aureola redentora. Dentro do contexto geral do documentário não dá para disfarçar, por exemplo, a dicotomia escatológica da imagem de Tarso Gereissatti e alguns outros políticos da mesma estirpe rodeando o caixão do poeta mitografado em seu velório.

Por outro lado, algumas imagens escolhidas do poeta são formidáveis, bem como algumas figurações são indeléveis. No que pese a força criativa de um poeta inspirado e desimpedido pelas amarras da totalização cultural, em que o produto vale muito mais do que o produtor, todas as recitações do poeta são marcadas pela legitimidade, pela honestidade e pela dignidade de um homem supremo em sua arte de analisar o mundo que o rodeia e o concebe. A poesia de Patativa do Assaré é bem maior do que uma cicatriz marcada por um regime político de exceção, não menos descomunal é sua simplicidade em cenas domésticas. Ele sim, em sua plenitude criativa e existencial, carrega em si uma dramaticidade repleta de vigor, capaz de emocionar até mesmo o mais anacrônico dos comunistas.

Ficha Técnica -Título Original: Patativa do Assaré - Ave Poesia Gênero: Documentário -Tempo de Duração: 84 minutos - Ano de Lançamento (Brasil): 2009 - Estúdio: Cariri Filmes / Iluminura Filmes - Distribuição: Direção: Rosemberg Cariry - Roteiro: Rosemberg Cariry - Produção: Petrus Cariry e Teta Maia - Música: Patativa do Assaré, Fagner, Fausto Nilo, Mário Mesquita, Ricardo Bezerra, Pingo de Fortaleza e irmãos Aniceto - Fotografia: Jackson Bantim, Ronaldo Nunes, Beto Bola, Kin, Rivelino Mourão, Luiz Carlos Salatiel e Fernando Garcia - Edição: Rosemberg Cariry

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Cinco e vinte

Os ônibus cobram
O ônus do ar com seus
Ânus de metal mundano
Recobrem com
Camadas sombrias
O ferro oxidado
Por asilos azedados
Onde as lágrimas
De Matilde respingam
Em esgrimas furtivas

A rua é imberbe
Nela nada cresce
Em forma de perdão
O trânsito trafica
Em segredo o sol
Apagado da solidão
Em um silêncio postergado
O velho portão perdeu
O domínio total
Das suas fronteiras

Matilde apenas olha
Fabrica soluços
E embala em lenços
Que transportam
Para sua alma o lixo
Cuidadosamente estocado
Em seus aposentos
Ela chora a ausência
Da sodomia do seu cão
Atropelado recentemente