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quinta-feira, 6 de agosto de 2009






Terra Sonâmbula – Mia Couto
Uma estrada que nunca é a mesma

Mia Couto é, além de um grande contador de histórias, um arquiteto da linguagem, um criador de teias, de corredores e de portas que se comunicam através de espelhos mágicos. A arte literária de Mia Couto está distante dos best Sellers, assim como a obviedade não está inserida em sua lógica criativa. Terra Sonâmbula é o primeiro romance desse moçambicano cheio de imaginações. Lançado em 1992, ele faz parte de uma trilogia do autor completada por “A Varanda do Frangipani” e “O Último Vôo do Flamingo”, em que ele aborda a trajetória moçambicana antes e depois da independência.

Os principais aparatos literários de Mia Couto partem da oralidade, da riqueza cultural, dos mitos e das lendas do seu povo, sofrido e maturado por uma colonização traumática e 30 anos de guerra civil. A poesia está inserida em seu imaginário literário, ela é o esteio em que se apóiam as suas possibilidades de desdobramentos do realismo fantástico, do realismo mágico e do realismo maravilhoso. Ele sofre influências diretas de Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, José Saramago, de outro escritor moçambicano: Craveirinha, e do escritor angolano José Luandino Vieira, autor do estupendo “O Livro dos Rios”.

Mas isso não quer dizer que Mia Couto tenha uma escrita capenga, em que suas influências escrevem por si. Muito pelo contrário, esse é apenas um ponto de partida, pois esse moçambicano escreve porque tem talento e originalidade, além de uma literatura de interferência social viva, mas não panfletária, mas não sectária. Ler “Terra Sonâmbula” é entrar em transe, em comunicação direta com os mundos paralelos e descontínuos da história, é visitar o estranhamento da poesia legítima. O mundo fantástico do velho Tuahir e do menino desmemoriado Muidinga revela um emaranhado de interligações entre a história e a ficção.

O pano de fundo de “Terra Sonâmbula” é a guerra civil de Moçambique e sua portentosa força de destruição e aniquilamento. Mas a perspectiva histórica tradicional é descartada. Não existe a presença de documentos, de datas presumidas, de testemunhos protocolados, de provas e contraprovas. O que emerge das 206 páginas dessa obra-prima contemporânea são os rebotalhos vivos das trincheiras espirituais daqueles que sobreviveram ao massacre indiscriminado ou que morreram anonimamente nas curvas sorrateiras das estradas do destino de um povo.

Mia Couto utiliza a técnica de construção em abismos para desenvolver o enredo de “Terra Sonâmbula”, que narra a trajetória fantástica de Tuahir e Muidinga, que vagam pelos ermos de um país devastado pela sangria desenfreada provocada pela insensatez humana. Depois que os dois encontram um ônibus carbonizado na beira da estrada, o velho resolve fazer morada, a contragosto de Muidinga, que não vê futuro permanecer ao lado de tantos cadáveres. Depois de resolvido que se abrigariam ali, eles buscam enterrar os mortos. É quando Muidinga encontra uma mala ao lado de um corpo perfurado por balas. Nela estão os maravilhosos cadernos de Kindzu, que jaz ali mergulhado em seu silêncio misterioso.

As histórias de Muidinga e de Kindzu irão se encontrar e se misturar, da mesma forma que a história e a ficção. A narrativa de Mia Couto é repleta de oralidade e de narrativas dentro de outras narrativas, em uma circularidade mágica em que desfilam tipos e estirpes, deuses e homens, identidades e entidades, através de uma reflexão densa sobre a necessidade de se juntar os pedaços e as desapropriações materiais e imateriais de um povo fustigado ao extremo pela tragédia, pela separação e pelo deslocamento. Após iniciar a leitura dos cadernos de Kindzu, Muidinga percebe que a estrada muda constantemente suas formas e suas paisagens. Com o aprofundamento das leituras ele percebe que ela muda também o significado das trajetórias, dos caminhos e dos transeuntes.

Esse encantamento fantástico se perpetua ao longo da narrativa de Mia Couto, que se desdobra em várias outras recontações mágicas e maravilhosas. Os personagens que vão aparecendo nos cadernos de Kindzu vão trazendo elementos para que Muidinga reconstrua o seu imaginário perdido devido a uma doença. Tuahir, que trabalhava enterrando mortos em covas coletivas e que recolheu Muidinga de um amontoado de cadáveres, passa a perceber que aqueles cadernos podem muito mais do que restituir a memória do seu protegido, eles podem alimentar a própria vontade de prosseguir.

O livro de Mia Couto fala da guerra, mas não através das suas entranhas, mas através das suas sombras, dos seus ecos. Em um jogo de aproximações e distanciamentos, de palavras criadas e veneradas, de junções e disjunções, o leitor vai tomando pé da situação sem que ele queira de fato que essa situação adquira uma forma definida, pois ele descobre pela força poética do autor que aquela é uma história de retalhos, de mosaicos, de ladrilhos pacientemente fixados ao logo dos caminhos e descaminhos. “Terra Sonâmbula” é uma história em que a completude não tem pertinência. E esse é justamente o lampejo genial de Mia Couto: saber ilustrar a força que a guerra tem em descompletar.

2 comentários:

Eu, Thiago Assis disse...

Mia Couto é um dos autores que pretendo conhecer assim que tiver mais tempo...
no momento tô lendo um de Wood Allen "numa velocidade tão grande" que num dá inveja nem pra uma tartaruga ¬¬'

fiquei com vontade de fazer urca no meio do ano só pra poder arranjar uma obrigação pra ler os livros novos... até Saramago entrou na lista!

até mais, professor
abraço

Marcos Vinícius Leonel disse...

Diga aí Tiago, beleza?!

Wood Allen é muito massa também.

Mia Couto é aquele autor que você se arrepende de não ter conhecido antes. Ele é muito bom mesmo e esse livro, especificamente, é uma obra-prima.

abraços