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sábado, 27 de junho de 2009










O Modernismo sob a ótica
De Peter Gay

Mais uma vez a editora paulista Companhia das Letras é responsável pela publicação de uma verdadeira obra de arte contemporânea, através da completa acepção da palavra pertinência. Agora a editora celebra a cultura em um calhamaço de 578 páginas sobre a origem e expansão do Modernismo, escritas pela competência e erudição do respeitadíssimo historiador alemão Peter Gay, autor de obras consagradas como “O Estilo na História” e “Freud: uma vida para o nosso tempo”.

“Modernismo – O Fascínio da heresia - de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” é o extenso título desse livro urgente para aqueles que vivem de aparências, imprescindível para aqueles que necessitam de uma alimentação saudável e fundamental para quem tem sua parcela de culpa, direta ou indireta, em nosso quadro universal do fracasso escolar, terra em que a pilantragem é matéria farta para teses de doutorado e o exibicionismo de títulos é a legitimação da mediocridade indelével. Nessa obra basilar, Peter Gay despiu a linguagem da cosmética teórica e assumiu corajosamente suas particularidades e preferências.

Dos incontáveis códices estéticos que servem “cientificamente” para fundamentar o arcabouço artístico do Modernismo, Peter Gay se utiliza, de forma minimalista, praticamente de dois axiomas: a heresia estética – como ele chama a transgressão aos cânones artísticos estabelecidos desde o período clássico até a famigerada era vitoriana – e o intenso mergulho psicológico da abordagem da existência do ser e do estar, em que pesem aí a descontinuidade do discurso e a fragmentação da realidade. Para tanto, o autor desvenda com muita habilidade e proficiência, como a história forneceu os motivos e os elementos que proporcionaram uma mudança tão radical, que foi o Modernismo, na forma de conceber, produzir e vender a arte.

“Modernismo – O Fascínio da heresia - de Baudelaire a Beckett e mais um pouco” é um magistral compêndio histórico de segmentos artísticos, de autores e de obras que perfazem a práxis modernista, abarcando de uma só vez literatura, teatro, artes plásticas, música, balé, cinema e arquitetura. Mesmo sem a pretensão de ser uma história social do Modernismo, Peter Gay não deixa de aprofundar as implicações da história, das ciências, da política e da economia, com todos os seus desdobramentos no cotidiano das relações sociais, na formação do paradigma modernista.

O que isso significa, bem como o que isso sugere, o leitor descobre através de uma leitura extremamente agradável e prontamente alertada para outras abordagens complementares, afinal de contas são galáxias complexas para caberem totalmente em um universo de apenas 578 páginas. Já na tomada inicial, quando o autor estabelece a presença de Charles Baudelaire como uma das pedras fundamentais nessa guinada estética, o leitor mais atento sente que um detalhamento do ambiente da segunda revolução francesa, de 1848, fornecerá muito mais subsídios para a aceitação da importância toda do maldito das flores do mal. Nesse caso, se o leitor tiver em mãos o livro “O Velho Mundo Desce aos Infernos”, de Dolf Oehler, também da Companhia das Letras, a festa será repleta de transversais.

A erudição e o refinamento das idéias de Peter Gay nos remetem diretamente à leitura de outros livros cheios de contigüidade tais como “A Emoção e a Regra”, com organização de Domenico de Masi, da editora José Olympio, que aborda os grupos criativos na Europa de 1850 a 1950 e atesta para o leitor que o paradigma modernista nãos se restringiu apenas a arte; e “Pós-Modernidade: a lógica cultural do capitalismo tardio”, de Fredric Jameson, da editora Ática, que mostra para o leitor os desdobramentos culturais, políticos e econômicos que vieram depois do Modernismo. A leitura desses outros livros não indica uma deficiência no livro de Peter Gay, muito pelo contrário, comprovam a envergadura e complexidade dessa obra magnífica.

Seria enfadonho esboçar aqui uma lista de autores e obras, bem como de tendências e peculiaridades expostas por Peter Gay ao longo de sua obra. É bem mais profícuo afirmar que até o mais perdulário dos imbecilóides reacionários, após a leitura desse livro, retirará das suas fuças o ar de parvo e a atitude de beócio diante de um quadro de Kandinsky ou de uma composição de Varèse. Mas se o incauto leitor não souber quem é nenhum dos dois nomes citados é melhor continuar acreditando que questão de gosto não se discute.

Munido de um conhecimento espetacular Peter Gay esmiúça com seu escafandro intelectual como o ódio à burguesia tornou-se um dos instrumentos que solaparam os quadrantes da estética conservadora rumo aos caminhos tortuosos e abismados da arte pela arte, até chegar ao litígio completo com o senso comum, passando pelo viés anarquista do desconstrucionismo das vanguardas, traduzido dramaticamente pela negação da própria arte em obras desconcertantes, como as sátiras prolíferas de um Marcel Duchamp, por exemplo.

Vale ressaltar que uma obra com uma temática dessa desnatureza jamais fugiria da polêmica. Sendo assim, a obscuridade e o enigma, que são próprios do desfazer modernista, se apresentam na obra de Peter Gay justamente através de algumas ausências inesperadas. É paradoxal atribuir uma importância descomunal à poesia de T. S. Eliot, sem fazer nenhuma menção à genialidade poética de Ezra Pound, o verdadeiro mestre do Modernismo e do próprio T. S. Eliot, ou até mesmo nenhuma referência às vertigens abissais de Fernando Pessoa.

Também é surpreendente como o autor alemão detalha o atonalismo musical até Schoenberg, passando por John Cage, sem abranger o concretismo eletrônico de Karlheinz Stockhausen. Outras tangências irremediáveis dizem respeito a nenhuma citação de Jorge Luís Borges e José Saramago, quando Peter Gay constrói uma cádetra justa a outro mestre do Realismo Fantástico, que é Gabriel Garcia Marques. Mas isso é o de menos. O saldo é muito mais superior em informações do que em formações, o que torna essa obra um verdadeiro antídoto à picaretagem, à ignorância e ao achismo provinciano.

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