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quarta-feira, 15 de abril de 2009


Patativa do Assaré - Ave Poesia
O dito pelo não dito


Patativa do Assaré já não se pertence mais, o materialismo histórico já providenciou o esvaziamento de sua propriedade. Até mesmo a obviedade canastrona das metáforas do homem pássaro e da poesia alada já perdeu o protocolo de posse e grilagem. Sobre o ícone histórico de um dos maiores poetas brasileiros paira uma solerte sombra de reforma agrária do seu legado poético, em que o aparelhamento de sua imagem e do seu prestígio atende aos mais diversos fins, como se a história fosse um pano de cozinha capaz de ser retorcido ao extremo. O documentário “Patativa do Assaré – Ave Poesia”, de Rosemberg Cariry, é um exemplo desse processo de reificação do poeta.

Ao término da exibição do filme, a sensação que o espectador mais desavisado tem é que Patativa do Assaré só não fez parte da resistência armada contra a ditadura militar, em grupos como o MR-8, VPR ou VAR-Palmares, por puro capricho do destino, que em espetaculosa chantagem emocional existencialista o transformou em um poeta cantor do pathos das vítimas da exploração latifundiária e da escravidão capitalista, ainda reservando uma canonização heróica, dentro da mais pura utopia romântica revolucionária. Reduzir a esse patamar a vida e a obra de um dos mais profícuos poetas do século XX é tentar engarrafar mil rosários, trezentas enxadas, oitocentas rabecas e mais trinta mil chapéus de palha, em uma garrafa pet e vender como souvenir em um congresso de um partido populista de esquerda qualquer.

O cineasta Rosemberg Cariry não consegue ultrapassar as fronteiras amareladas do Cinema Novo e sua concepção nacionalista de que o homem novo surgiria messianicamente do seio do povo, das entranhas das raízes populares da cultura, o único portal cósmico capaz de formatar a verdadeira identidade brasileira. Essa postura ideológica de esquerda, às vezes festiva, de encontrar a legítima essência brasileira a partir de uma celebração inconteste das camadas populares e suas respectivas culturas foi fomentada e sedimentada principalmente nas fileiras dos Centros Populares de Cultura, do Partido Comunista, e da célebre Revista Civilização Brasileira, entre 1968 e 1978, através de artigos de autores da resistência intelectual como Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Heloísa Buarque de Hollanda e Ferreira Gullar, entre outros. A partir daí nasceram e cresceram as inúmeras diluições sectárias do herói brasileiro, ora com fundamentações marxistas-lenistas, ou maoístas, ou trotskistas, ou de outras vertentes mais incautas ou mais caricaturais.

Por um lado, algumas idiossincrasias chamam a atenção nesse documentário, às vezes pela ironia da própria história desapropriada, às vezes pela ironia apropriada pela própria história. De fato existe esse aspecto de crítica social na obra do maior poeta cearense, vivo ou morto, com ou sem recompensa. Não há como refutar isso. Mas também é fato que a trajetória literária e existencial do poeta é muito maior e muito mais diversificada, é um trem com diversos vagões e diversas estações, nem sempre concatenadas com esse ideário criado para ele, como uma aureola redentora. Dentro do contexto geral do documentário não dá para disfarçar, por exemplo, a dicotomia escatológica da imagem de Tarso Gereissatti e alguns outros políticos da mesma estirpe rodeando o caixão do poeta mitografado em seu velório.

Por outro lado, algumas imagens escolhidas do poeta são formidáveis, bem como algumas figurações são indeléveis. No que pese a força criativa de um poeta inspirado e desimpedido pelas amarras da totalização cultural, em que o produto vale muito mais do que o produtor, todas as recitações do poeta são marcadas pela legitimidade, pela honestidade e pela dignidade de um homem supremo em sua arte de analisar o mundo que o rodeia e o concebe. A poesia de Patativa do Assaré é bem maior do que uma cicatriz marcada por um regime político de exceção, não menos descomunal é sua simplicidade em cenas domésticas. Ele sim, em sua plenitude criativa e existencial, carrega em si uma dramaticidade repleta de vigor, capaz de emocionar até mesmo o mais anacrônico dos comunistas.

Ficha Técnica -Título Original: Patativa do Assaré - Ave Poesia Gênero: Documentário -Tempo de Duração: 84 minutos - Ano de Lançamento (Brasil): 2009 - Estúdio: Cariri Filmes / Iluminura Filmes - Distribuição: Direção: Rosemberg Cariry - Roteiro: Rosemberg Cariry - Produção: Petrus Cariry e Teta Maia - Música: Patativa do Assaré, Fagner, Fausto Nilo, Mário Mesquita, Ricardo Bezerra, Pingo de Fortaleza e irmãos Aniceto - Fotografia: Jackson Bantim, Ronaldo Nunes, Beto Bola, Kin, Rivelino Mourão, Luiz Carlos Salatiel e Fernando Garcia - Edição: Rosemberg Cariry

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