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sexta-feira, 14 de agosto de 2009



O Cavaleiro Inexistente – Italo Calvino
A retroversão da ausência

Italo Calvino é um arquiteto da palavra e um contador de histórias cheio de encantamento. A inventividade de Calvino tem muitas facetas e uma delas é o estranhamento fantástico de seus enredos singulares, fragmentados em um caldeirão de signos e referências. “O Cavaleiro Inexistente” faz parte da hiperbólica trilogia “Os Nossos Antepassados”, em que o autor apresenta uma Idade Média ludicamente destituída das suas idealizações.

A ironia, os jogos literários, as paródias, as intertextualidades, a metalinguagem e o experimentalismo fazem de Italo Calvino um dos maiores escritores do século XX. No entanto, todo esse aparato literário por si só não é suficiente para projetar um escritor no grupo dos essenciais. É preciso ter voz única e uma especificidade que justifique o falível e o infalível inerente à autenticidade. Isso ele tem de sobra. As pouquíssimas páginas de sua trilogia primordial atestam todo seu talento ímpar, através de um poder de síntese mágica, reservada para uma minoria.

“O Cavaleiro Inexistente” teve a sua primeira edição em 1959 e conta a história impossível de um nobre cavaleiro das gloriosas tropas de Carlos Magno, que inexiste em sua armadura reluzente. Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Atri de Corbentraz e Surra, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez, contraria a existência através da sua inexistência que existe. Ele é o último de uma linhagem legítima de nobres idealizados em meio a uma decadência generalizada prestes a esfarelar os valores de uma era inteira.

A voz metálica dentro da armadura impecável é carregada pela angústia anônima dos destinados a religar o fim ao início da história, que se recusa a passar e se quer eterna. O paladino Agilulfo é decidido a se entregar à causa cristã, respaldada que é pela poderosa armada do grande imperador Carlos Magno e sua sede de conquista em nome de Deus. Entre uma batalha e outra Agilulfo tem a sua condição de nobre cavaleiro questionada. De imediato ele parte em busca de provar a sua honra, vai atrás de uma virgindade defendida em um passado remoto. Isso é suficiente para um enredo inesperado criar forma.

A engenhosidade de Calvino não está apenas na criação em abismo, em que uma freira é condenada a escrever o próprio livro da sua vida – que é o livro que se lê -, tendo Agilulfo como uma esfinge incapaz de decifrar o seu cativo enigma. Calvino vai além disso, ele adiciona uma farta dose de ironia anárquica onde existia apenas o riso de Cervantes ao desconstruir o cânone dos romances de cavalaria, além de permear uma densidade de signos e símbolos, construtora da opacidade maior desse enredo maravilhado. Italo Calvino desdobra Cervantes e Rabelais em um constante processo de metalinguagem, de apropriações e desapropriações estéticas.

Através da simetria insípida, racional e burocrática de Agilulfo, que se auto proclama instrumental: “Não ofendo ninguém: limito-me a explicitar fatos, lugar, data e uma grande quantidade de provas!”, Calvino aponta para o objeto deslumbrado com o próprio objeto, como um simulacro da eternidade que expurga qualquer resquício da subjetividade e da miserável paixão humana, alimentada pela assimetria do aleatório.

Agilulfo tem voz, mas não tem linguagem pulsante. Ele não conhece o sabor da derrota, do fracasso, ele é um infalível sem falo, por isso inumano, apenas uma farsa, uma fantasmagoria. Ele é a própria embalagem a vácuo da assepsia contemporânea, como uma cosmogonia que revela o universo do nada, da antimatéria. Mas isso não é tudo. O enredo reserva ainda muitas surpresas, através de uma narrativa extremamente encantatória, hipnotizadora, revestida de um humor refinado, capaz de criar cenas verdadeiramente antológicas dentro da literatura universal. O mais espantoso é que tudo isso está contido em apenas 133 páginas.

Em qualquer obra de qualquer escritor medíocre, tipos como Gurdulu, o escudeiro mais improvável das histórias de cavalaria; a viúva Priscila, que tem o caos dos desejos sexuais pintado em suas unhas libidinosas; Torrismundo, que arrasta um baú de ressentimentos insolúveis; Rambaldo, que se deslumbra com a precisão de Agilulfo, mas que se enreda nos vacilos viçosos da paixão; e Bradamante, a própria divisória entre o sagrado e o profano em sua eterna guerra pelos caminhos errantes da terra; precisariam de páginas e mais páginas para respirar e ter vida. Com Italo Calvino não, pois ele é mestre.

Um comentário:

Carlos Rafael Dias disse...

Alô, alô, Marcos Leonel,

Estou querendo agendar contigo uma participação no programa Cariri Encantado, mas você tá mais sumido do que ninho de anum.

Entre em contato.