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segunda-feira, 16 de junho de 2008






UM BLOCO DESAJUSTADO


O ano era 1973. Tempos criminosos aqueles, o terror nas ruas, o medo nas almas de grande parte da população brasileira e a resistência calada pela violência, inventava uma outra língua para se expressar. Esse é o ano que Sérgio Sampaio coloca o seu bloco na rua, com um disco genial, irônico, pessimista e marginal.

“Eu quero é botar meu bloco na rua...” é o primeiro disco de Sérgio Sampaio, impulsionado pelo sucesso da música título no VII Festival Internacional da Canção. O compositor apareceu de fato em um projeto freak chamado Sociedade da Gran-Ordem Cavernista, junto com Edy Star, Miriam Batucada e Raul Seixas. Era o início de uma carreira curta em termos de obras e longa em termos de decepções pessoais e mercadológicas. O talento desse compositor original, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, foi interrompido em 1994, vitimado por uma pancreatite aguda.

Antes de tudo Sérgio Sampaio é poeta, daqueles que refletem sobre o seu tempo e o tempo inventado pela existência paralela dos signos. A metáfora do nome de Sérgio em vermelho, sangrando, na capa do disco, revela a urgência daquelas palavras colocadas com a perfeita precisão descontínua de um anátema. O compacto, lançado antes do Lp fez sucesso e vendeu mais de 300 mil cópias, já o Lp fez sucesso de imediato e logo depois caiu na clandestinidade do mercado fonográfico. O que é realmente de se esperar em relação às grandes obras, o que exige raciocínio dificulta a aceitação e a conseqüente conservação no imaginário popular.

A sintomática faixa “Viajei de Trem” projeta o sentimento poético diante da barbárie que os olhos da consciência testemunhavam. “Fugi pela porta do apartamento / nas ruas, estátuas e monumentos / o sol clareava num céu de cimento / as ruas, marchando, invadiam meu tempo / viajei de trem / viajei de trem / viajei de trem, eu vi... / o ar poluído polui ao lado / a casa, a dispensa e o corredor / sentados e sérios em volta da mesa / a grande família e o dia que passou / viajei de trem, eu viajei de trem / eu viajei de trem, mas eu queria / eu viajei de trem, eu não queria / eu vi... um aeroplano pousou em marte / mas eu só queria era ficar à parte / sorrindo distante, de fora, no escuro / minha lucidez nem me trouxe o futuro / queria estar perto do que não devo / e ver meu retrato em alto relevo / exposto, sem rosto, em grandes galerias / cortado aos pedaços em fatias / eu vi... seus olhos grandes sobre mim”

O estranhamento da viagem de trem é o mesmo da vida artística do autor, que travou uma batalha intensa contra o alcoolismo e o anonimato dos anos 80 e 90 e que tentou de várias formas ser respeitado no universo pop brasileiro. A pecha de maldito fez com que as vendagens dos seus discos despencassem e ele fosse rejeitado pelas gravadoras. O mercado fonográfico não tem amor nenhum pelos autores originais. Na realidade o mercado fonográfico é um grande frigorífico que vive de carne nova, que dê lucro imediato e seja descartada em seguida, para dar lugar a mais nova armação. Mesmo assim a obra de Sérgio Sampaio resiste ao tempo, como um manuscrito encantado, que revoga o estereotipo e instaura o re-desejo pela arte.

O disco tem sambas, bossas, baladas, valsajazz, rocks, resquícios de tropicalismo e muita ironia poética. A banda é de feras, com participações mais do que especiais de Piau, Ivan Conti e Zé Roberto Bertrami, o primeiro consagrado ao lado de Luiz Melodia e Tim Maia, os dois últimos consagrados músicos internacionais de jazz fusion com a respeitadíssima Azymuth. Os arranjos ficaram aos encargos de Sérgio Sampaio, Raul Seixas e Zé Roberto Bertrami. A produção é de Raul Seixas, que naquele momento estava com toda a moral do mundo na Philips e foi ele que levou Sérgio para lá, se não num rolava nunca. São muitos os destaques, mas o grande sucesso ficou mesmo por conta da insofismável pérola “Eu quero é botar o meu bloco na rua...”, em ritmo de samba canção, misturado com um pop marginal.

“Há quem diga que eu dormi de toca / que eu perdi a boca / que eu fugi da briga / que eu cai do galho”; “E não peço desculpas / que eu não tenho culpa / mas que eu dei bobeira / e que Durango Kid quase me pegou”; “Hoje está passando um filme de terror / na sessão daz dez, um filme de terror / tenho os olhos muito atentos / e os ouvidos bem abertos”; “Por trás dos edifícios / na cidade moderna / os labirintos negros / prendem os que esperam / a condução ou não”; esses são versos de Sérgio Sampaio, que ecoam para sempre na memória esquecida desse país recolhido em seu menosprezo altista. Mas para encerrar eu escolho justamente os versos que abrem esse disco genial, “No meu sorriso de adeus / vou me fazer de moderno / no meu encontro com Deus / (...) aí meu sorriso de adeus / vou me fazer de eterno / no meu encontro com Deus”.

A banda

Sérgio Sampaio - violão e voz
Piau - violão solo e guitarra
Ivan “Mamão” Conti - bateria
Wilson das Neves - bateria
Alexandre - baixo
Zé Roberto Bertrami - piano e moog
Conjunto “Creme Cracker” - percussão

2 comentários:

Carlos Rafael Dias disse...

Que legal, cara, seu bom gosto musical, sua literatura e seu feeling! Em cada crítica musical dessas, a gente viaja legal...

Marcos Vinícius Leonel disse...

valeu cara, estou recolhendo algumas poesias suas, de geraldo e wilson para comentários literários, estou quase de férias
abraços