AQUI VOCÊ ENCONTRA ARTES, DERIVAÇÕES E ALOPRAÇÕES

Quem sou eu

Minha foto
Crato, Ceará, Brazil
Um buscador, nem sempre perdendo, nem sempre ganhando, mas aprendendo sempre

segunda-feira, 11 de agosto de 2008






Eraserhead, o bizarro
Que não se consegue apagar

A recente edição em dvd do primeiro longa-metragem de David Lynch, “Eraserhead” é muito mais que oportuna, enquanto peça fundamental para o entendimento daquilo que parece incompreensível a uma primeira leitura: o universo bizarro de David Lynch, em película e fora dela.

Esse filme tem várias vertentes fundantes. Cheio de traços pessoais, um período cheio de turbulências, um mestre em sua luta contra as teses canônicas, e uma busca por uma estética imantada, que só precisava de práxis, servem para dar ao espectador, elementos que ele possa reconstruir aquilo que o autor tenta desconstruir ao longo de sua carreira cinematográfica.

Essa edição trás um David Lynch consagrado, revelando e velando facetas em um significativo comentário-depoimento sobre o seu primeiro longa, alocado como extra. Tão importante, para os alucinados por ele, quanto o próprio filme. Essa é uma outra peça de arte. Duas em uma embalagem só. Nesse depoimento o autor não faz referência nenhuma à sua experiência particular de ter sido pai precocemente, e que o filho nascera com deformação nos pés. O casal de “Eraserhead” também tem um filho inesperado, um ser mutante. Mas aí são outros quinhentos.

É gratificante ver o tratamento dado pelo autor a esse anexo. Quando David Lynch encerra o depoimento afirmando que nenhum crítico ou qualquer outra pessoa do seu conhecimento fez uma interpretação do filme parecida com o que ele acha, sem revelar o que acha sobre o próprio filme, ali nós temos a reificação do universo cinematográfico desse mestre da escatologia humana. Nada se resolve, apenas o espanto.

David Lynch trabalha com o estranhamento, técnica de composição textual que ele transporta semioticamente para as montagens dos seus enredos. Em seu livro “Olhos de Madeira”, mais precisamente no artigo “Estranhamento, pré-história de um procedimento literário”, o filósofo italiano Carlo Ginzburg, entre outras teses sobre esse recurso, cita o escritor russo Chklovski, que justifica a quebra da linearidade discursiva como uma forma de se aprofundar na realidade, devido ao peso dos hábitos inconscientes, que automatizam tudo, o que é real e o que é irreal.

É isso que David Lynch faz. Quebra o discurso através do estranhamento, das alegorias, da descontinuidade, da fragmentação e da circularidade, para que o espectador seja jogado em uma urgência de compreensão. Assim ele vai desfilando os seus ícones e símbolos de uma decadência contemporânea, dentro e fora do ser, sem respeitar necessariamente as concepções de possível e impossível.

“Eraserhead” é a história fragmentada de Henry, que tem a notícia de que é pai precocemente e que seu filho é um mutante. Logo Henry é rejeitado pela própria namorada e passa a conviver brevemente com os seus infortúnios, dividindo o seu apertado apartamento com alucinações, entidades espirituais e um cotidiano povoado de máquinas e objetos, completamente despovoado de humanismo.

Pode-se afirmar que “Eraserhead”, a partir do título, é a saga do não ser. O cenário é árido, industrial, com traços de urbanidade e uma vaga noção de família, que não consegue coagular o seu intenso desequilíbrio mental, espiritual e existencial. A cena do jantar em que Henry visita a família da namorada é uma verdadeira peça suprema da escatologia humana, da loucura, da ignorância espiritual e da fragmentação da realidade.

David Lynch é um fabricante de universos particulares. Às vezes claustrofóbico, às vezes em pleno devaneio libertino. Mas sobretudo, David Lynch é o poeta da alma humana, em toda a sua pungência de abismos. Todos os elementos metafísicos e metalingüísticos de David Lynch estão lá, em “Eraserhead”: os espelhos; a vacuidade; as entidades espirituais; o palco; a prostituição existencial; a busca pelo amor; o desperdício da vontade; a trilha sonora concreta e experimental; o devaneio; o pesadelo; a solidão humana e a condição inconteste do indivíduo não ter controle algum sobre a existência.

Assista e tenha um excelente espanto.

2 comentários:

Unknown disse...

Excelente texto, Marcos. Lembro que o primeiro filme de Lynch que vi foi "O Veludo Azul", indicado por você mesmo, ainda no terceiro ano do Colégio Paraíso. Na época, não entendi muita coisa. Até que vi Mulholland Drive, que, na minha opinião, ainda é o melhor dele, embora ainda não tenha visto este Eraserhead.

Um abraço

Marcos Vinícius Leonel disse...

Diga aí Isaac, beleza?
Cara esse é o primeiro longa dele, em preto e branco, mas já cheio de quebra de regras canônicas, e olha que esse filme foi patrocinado pelo Instituto Americano de Cinema, onde ele estudou por dois anos. O enredo é cheio de simbologias, alegorias e outras referências existenciais. Tem um certo ar de surrealismo, mas é só aparência, ele trabalha mesmo é com o estranhamento. Ele lida com os conceitos de família, sobrevivência e sociedade nesse enredo. Claro que a crença não poderia ficar de fora, com aquelas entidades espirituais aparecendo a todo momento. Esse filme dele não tem muito diálogo e é filmado praticamente em ambientes internos. É pra ser visto sem conceituações, deixar a película incomodar até o final.
vlw cara, é sempre bom ter você por aqui.