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sábado, 28 de fevereiro de 2009



“O amor é um cão dos diabos”
Charles Bukowski – Um fantasma urbano

Bukowski nunca morreu. Ele passou por um processo de destilação. Foi depurado. E também dependurado pela infâmia, enforcado como um indigente intelectual. Seus escritos cheiram a detergente de banheiro público. E como os velhos pombos que se revezam para cagarem na estátua do passado, ele não se esforça mais para reaparecer, alguém faz isso por ele. Afinal de contas, sempre alguém tem que fazer o serviço sujo, seja no sentido lato seja no sentido estrito.

Dessa vez foi a L&PM Editores, além de outros títulos desse poeta maldito, foi publicado em uma pequena tiragem “O amor é um cão dos diabos”, com tradução de Pedro Gonzaga, de 2007 e ainda não esgotada. O livro conserva em garrafas de vinho barato uma coletânea de poemas escritos entre 1974 e 1977. Neles o velho safado faz referências ao sexo pago, aos balcões de quinta categoria, às drogas, às bebedeiras, às corridas de cavalos e à onipotente decadência da sociedade americana como um todo. Entre um vômito e outro, uma puta e outra, não faltam referências metalingüísticas.

Bukowski nunca foi beat. Bukowski nunca ligou para a estética. A sua concepção de arte é uma luta de boxe, é uma corrida de cavalos, ganha quem apostar certo. Quem perder pegue suas coisas e caia fora, sem precisar lavar as mãos ou a bunda. Para imaginar o Senhor Buk recitando o seu poema cínico: “Como ser um grande escritor”, é preciso nublar a mente e entorpecer as pretensões ou faça como quem vai comprar uma dúzia de ovos para bebê-los na casca ainda manchada pela cloaca.

Assim os versos surgem como uma hemorragia de um pilantra esfaqueado em uma noite desiludida: “Arranje uma grande máquina de escrever / e assim como os passos que sobem e descem / do lado de fora de sua janela / bata na máquina / bata forte // faça disso um combate de pesos pesados // faça como um touro no primeiro ataque // e lembre dos velhos cães / que brigavam tão bem: / Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.” Essa verve tem a erupção repentina de um sexo reprimido por tanto tempo. Assim serpenteia na velha cidade decrépita a língua pagã do poeta degenerado.

Bukowski nunca foi honesto. Da mesma forma que ele nunca pagou uma conta inteira, ele sempre camuflou sua linguagem com a despretensão canastrona dos espiões. Ele desconstruía a sua técnica para não parecer estranho à porção de bacon frito com conhaque de um dólar. Isso ele fazia como ninguém. Ele era, da sua sarjeta, um voyeur da sarjeta alheia. Ele sentia prazer em lamber a lâmina da faca infectada. “Frequentemente vou comer nesse / lugar / por volta das 2h30 da tarde / porque todas as pessoas que almoçam / ali estão particularmente arruinadas / felizes pelo simples fato de estarem vivas e / comendo feijão / próximas a uma janela de vidros espelhados / que impede a passagem do calor / e não deixa que os carros e as / calçadas cheguem ao interior.” Rosna ele em “Uma janela de vidros espelhados”.

O realismo sujo desse poeta alemão-americano não é o mesmo empalhado nas pulgas, percevejos e carrapatos vendidos diluidamente em livrarias de avenidas com grande fluxo e consumido e imitado por poetas nanicos que bebem e depois lavam os aparelhos dos dentes com listerine para esconderem a ressaca. O latido desse cão só é fiel ao cio da sua própria existência. Esse é o realismo de quem de fato brigou intensamente com a vida. Quando criança Bukowski era espancado constantemente pelo pai alcoólatra. Na adolescência tornou-se mais pobre ainda e ganhou inflamações cutâneas por todo o rosto e tórax, que transfiguraram a sua solidão para sempre. Definitivamente ele entrou para a marginalia urbana como um velho trilho por onde não passam mais trens.

Bukowski nunca foi um queridinho da mídia. Sempre foi um velho anarquista. Começou a escrever tardiamente, já com 35 anos, e o fez com a paixão de um maníaco, bem mais do que cem livros. Escreveu prosa e poesia, boa e ruim. Praticou a grande literatura e a literatura barata, que não serve nem para enrolar peixe na beira do cais. Mas esse é que é o grande barato ao ler Bukowski: descobrir quais são os caminhos que levam a um boteco enfumaçado e cheio de putas e marginais ou aqueles que levam aos grandes salões freqüentados pelas boas famílias e pelos estelionatários culturais.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Cinco para as quatro

Eis um rio desaguado
Que solidão insólita aquela
Sem dentição aparente

Na margem direita
A desolação do velho sofá
Sem reino e sem níqueis
Retidos em segredos

Na margem esquerda
A disjunção onírica
Das cápsulas deflagradas
Que não decifram o inimigo

Na margem incontida
O prazer inafiançável de
Se dependurar em grampos
Sob a pele em sala escura

Eis uma inundação
De espermas nas pernas
Sem restrição aparente

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009






Torquatália
Torquato Neto em obras reunidas


A editora Rocco lançou obras reunidas de Torquato Neto em dois volumes, com organização de Paulo Roberto Pires, sob os títulos de Torquatália Volume I (do lado de dentro) e Torquatália Volume II (geléia geral). Todos muito bem organizados e muito bem pesquisados, mas com capas poquissimamente transadas, como diria o vampiro, o nosferatu urbano. Mas o que importa é o conteúdo, é estar por dentro, sem deixar nada por fora, sem deixar de constranger o constrangimento.

Dos dois um me chamou mais a atenção, o volume dois, que tem as colunas escritas pelo poeta piauiense, o período do Jornal dos Sports, com a coluna Música Popular; a curta colaboração no encarte Plug, do Correio da Manhã; e a deliciosa fase da coluna Geléia Geral, do jornal Última Hora. São escritos deferidos à queima roupa, em grande estilo bang, visceralmente passionais, desbundadamente transados, sem grilos, desbaratinados, sem nada nos bolsos ou nas mãos, apenas uma câmera na cabeça e um cometa iridescente entre os dedos, deixando um rastro imenso de história viva.

Todas as referências históricas, tidas ou retidas, são narrativas vivas - no sentido de Baudrillard - tenham ou não cursividade e sem nenhum cunho de verdade absoluta. Mas existem algumas referências históricas que são imanentes em suas revelações e que acabam por traduzir o idioma mais estranho do significado. As colunas de Torquato, que não era Hércules e nem Quasímodo, servem para desmoronar mitos e relíquias, reconstruindo, elas mesmas, um novo descaminho para a indulgência sub-repticiamente engalanada pela benevolência crítica.

Lendo os escritos da coluna Musica Popular, em que o então paladino das purezas estéticas postula suas fileiras de resistência cultural à invasão globalizada do rock e outras milongas, fica fácil perceber que aquelas velhas paridades dialéticas entre o velho e o novo, evidentes em um Brasil remoto(?) da Semana de Arte Moderna, estavam mais vivos do que nunca. Sendo que curiosamente o lado da vanguarda clamava pela tradição, assim, a palavra que mais se escreve é samba, em que se deve ler preservação; imobilidade; gôndolas de mansinho na mesmice; defesa inconteste da isonomia cultural brasileira.

Torquato escrevia sinceramente e deliberadamente determinava seus domínios e seus redutos. Já era ditadura em seus princípios. A esquerda defendia o que era “nosso”, purificada cultura cabocla e popular. A direita se quedava ante os encantos reacionários americanos. A igreja agradecia os milagres da repressão. A sociedade prosseguia com sua extensa marginalia provinciana. O mercado fonográfico assumia ares demoníacos e capitalistas. Surgiam Chico Buarque, Gilberto Gil, Sidney Miller, Caetano Veloso e Sérgio Ricardo, entre outros, que defenderiam nos grandes e pequenos festivais a música brasileira das impurezas. Era o tempo de marchas, modinhas, sambas e similares.

O grande inimigo era o iê-iê-iê na forma de pastiche e a tendência de eletrificação da música popular. Há quem afirme que era o proto-rock brasileiro. São incríveis as secularizações dos ambientes, das pessoas, dos artistas, dos empresários e da convivência cultural no eixo Rio-São Paulo, registradas por Torquato Neto, nem sempre com propriedade crítica, mas sempre munido de opinião e coragem, verdadeiramente os únicos recursos que nos podem salvar dos Chapolins Colorados da ética e das etiquetas intelectuais.

Já no período final dessa fase, com a decisão de eletrificação da música por Gilberto Gil, registrado em artigo do dia primeiro de outubro de 1967, sob o título de Compositores e Críticos, é muito delicioso perceber como a percepção intelectual de uma grande figura começa a ser moldada em pleno conflito ideológico. É muita riqueza existencial: eis o verdadeiro pf cultural, alimenta o espírito e a conduta, sem afetações ou messianismos. Para alguns exegetas mais apressados aqui se delineia um dos principais ingredientes existenciais que culminariam no suicídio de Torquato Neto, em 1972.

É muito legal perceber como a mudança ideológica, diria até, a busca incessante, modifica o signo e a linguagem. Bem mais maduro esteticamente, mas grandemente dialético ideologicamente, Torquato se mistura, se mescla, se traveste de outras faces e de outras facetas. Uma sintaxe fluida ao mesmo tempo em que fragmentada e descontínua, apresenta fatos, versos e versões sob um olhar atento aos novos tempos ao mesmo tempo em que desatento aos mesmos contentos. Eis o vampiro, que não se cansa de transfusões. Adoro o som dessa metralhadora giratória. Algumas coisas devem ser realmente metralhadas, diante da sensibilíssima alienação dos cânones.

É de lá, da famosa Geléia Geral, que se erguem e se espalham os baratos, os grilos, as transas e os parangolés opinativos de maior grandeza. Os laços afetivos se expandem pouco, mas se solidificam em trincheiras acesas, em guetos, em células de resistência, em aparelhamentos e patrulhas, como estrategicamente queriam os criminosos da ditadura militar, agora em plena tragédia social. Torquato escreve e pensa sobre cinema, música e arte em geral. Torquato confessa e exibe suas inquietações, escreve poesia e deixa um rastro indelével em nossa cultura. Nas entrelinhas é possível perceber o fim trágico, mas jamais o término, pois isso não se finda, se desdobra em encantamento.

Alguns detalhes transformam curiosidades em outras narrativas. Em momento nenhum se lê a palavra, o nome, a entidade: Tom Zé, a não ser pelo organizador, na cronologia inserida como último capítulo. Hermeto Pascoal também não é citado, como também Rogério Duprat. E deveriam? Em nenhum momento existe menção direta ao Tropicalismo, como um movimento, em nenhum escrito de nenhuma coluna. São apenas ossos do ofício? Leia o livro e tire suas conclusões. Eu recomendo, do alto da minha insolência crítica.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Três e trinta

Em cada esquina
O tempo ejacula um poste
Com um entroncamento
De fios de alta tensão

Por onde entre ângulos exóticos
De paralelos elétricos se vê
Um avião planar seus metais
Antes de pousar sua melancolia

Enquanto a corrente passa
Fazendo um zumbido seminal
Os micro-ondas agendam
Seus compromissos eletrônicos

Uma janela decaída
Do primeiro andar decaído
Em tese se alimenta da luz lilás
De um supremo abajur

Lá naquele intransigente
Apartamento decaído
Florinda toda acorrentada
Treme de gozo a cada chicotada

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Fração de segundos

Sete parafusos balançam
Afoitos na fuselagem da fuligem
Toda vez que os sete ratinhos fundam
A anarquia e roem as fantasmagorias
Das flores alegóricas que rondam
A vagina virgem de Madalena

Ao longo do horizonte
É possível vislumbrar a sombra
Dos soldados sem soldos que lutam
Pela transubstanciação do mito
Os coágulos dormem sob os dígitos
As moscas fecundam os signos

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

Doze em ponto

Por tanto tempo
Essa canção em costelas e pele
Se esgueira pelas frestas do cabaré em festas
Os ouvidos imundos são bem mais
Mundanos do que sortudos

A usura dessas pústulas
É serem divertidas por tanto tempo
Esquadrinhados em balcões cabisbaixos
São esses os cotovelos velados
Na fila torta da sopa embalsamada

Trezentos porcos famintos
Chafurdem por tanto tempo nos desejos
Sumários de Das Dores Sem Piedade
Conhecida por suas complexas depilações
Eróticas com borboletas enferrujadas