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segunda-feira, 24 de novembro de 2008



The Stooges – 1969
A lisergia primal

Falar dos Stooges é falar do submundo, é procurar entender a contracultura, é perceber que a música não precisa necessariamente ser um fim, mas apenas um meio para expressar o sentimento da existência impura da contravenção, do aniquilamento imperdoável do tempo e do espaço.

Depois de tantos anos e tantos rótulos fornecidos pela merdologia crítica do mercado musical, fica fácil enquadrar a banda em uma estética qualquer, como proto-punk, por exemplo. Mas isso é porcaria, sem função nenhuma. Aliás, não ter função era uma das intenções da banda, que começou a subverter a ordem até na sua própria concepção estética: eles se achavam psicodélicos, antagônicos ao movimento de Los Angeles. Inicialmente eles se proclamaram The Psychedelic Stooges, algo parecido como Os panacas psicodélicos, em tradução livre.

Eles achavam que ser psicodélicos era construir seus próprios instrumentos, como Harry Partch, um obscuro e injustiçado compositor americano, que desenvolveu uma marginalizada estética baseada em escalas microtonais e atonais, fabricando seus próprios instrumentos para isso. É também de Harry Partch que vem boa parte da performance corporal de Iggy Pop no palco. Harry Partch fez uma junção de música, discurso e expressão corporal em várias de suas peças, entre elas a descomunal interpretação operística do poema “Sophocles’ Oedipus”, de Willians Butler Yeats.

Nos primórdios da banda a percussão era baseada em tonéis de metal vazios e outros apetrechos. Uma guitarra sem quase nenhuma técnica em volume estratosférico e um vocal desesperado, com Iggy Pop cantando suas apatias vestindo uma camisola de maternidade e empunhando uma tábua de lavar amplificada. Eles evoluíram, se é que se pode afirmar isso, para uma banda com formação comum e impressionaram um executivo da Electra, que havia viajado para Detroid com o intuito de contratar o MC5. O som não impressionou tanto, mas Iggy Pop cortando o próprio corpo com vidro e se lambuzando com pasta de amendoim no palco, enquanto berrava o seu tédio, sim.

Para registrar o primeiro disco, intitulado apenas “The Stooges”, a banda precisou completar o material, pois eles só tinham cinco músicas no repertório: 1969; No fun; I wanna be your dog; We will fall e Ann. A banda vivia de longas improvisações no palco. Boa parte delas está registrada em seus discos, com sessões históricas, repletas de álcool, drogas e experiências diversas. As músicas Real cool time; Not right e Litle doll foram compostas, então, em uma madrugada e tocadas pela primeira vez no estúdio. Uma boa parte de We will fall também foi acrescida no estúdio.

O disco teve a produção de ninguém mais do que John Cale, líder do Velvet Underground, que ainda tocou piano em I wanna be your dog e viola em We will fall. O som é cru, é visceral, é na cara, sem constrangimentos de nenhuma espécie. A maioria composta em três notas, suficientes para descabelar qualquer um que busque complexidade harmônica, como também suficientes para entusiasmar qualquer um que esteja cansado de hermetismos musicais e prolixidades discursivas.

1969 é sem nenhuma esperança. É uma espécie de shufle anarquista, abre o disco como um verdadeiro cartão de visitas de vendedor de aspirador de pó. A ironia fica por conta desse vendedor estar em um bairro pobre, sem grana e sem futuro. O wha da guitarra de Ron Asheton ficou marcado para sempre, esse é um dos hits mais Cult de todos os tempos. I wanna be your dog é um clássico, um hit natural, com uma seminal parede fuzzy de guitarra, além de uma percussão pernóstica, que lembra sons de natal. Iggy Pop não canta essa música, ele proclama. Imperdivelmente sujo, marginal, submundo.

We will fall é uma faixa bizarra e experimental. Tem o minimalismo apresentado muitas vezes nas músicas do Velvet. Depois de tanto tempo passado o clima soturno dessa faixa não envelheceu e é o que mais se aproxima de uma pegada psicodélica. No fun, a faixa seguinte, é deliciosamente marginal, um hino ao desperdício juvenil, retratando a falta de perspectiva americana. A bateria de Scott Asheton e o baixo de Deve Alexander recebem o auxílio de palmas, bem ao estilo roots. Essa faixa tem a autenticidade cretina que faltou aos Rolling Stones e a ironia satírica marginal que nunca esteve presente nos Beatles. Também não sei se era preciso.

Real Cool time, Ann, Not right e Litle doll fecham o disco com o estilo legítimo dos Stooges: com ironia e improvisações, com direito à lisergia em Ann e ao peso cru nas duas últimas músicas. Esse é um disco histórico, não por pertencer a um passado rico artisticamente, mas por ter feito história, na concepção maior do termo. A grande contribuição desse disco é justamente fundar a não estética, o não virtuosismo. Sobre ele pesa a atitude de uma geração que se viu ludibriada pelos ilusionistas do way of life americano. Ouvir esse disco depois de tanto tempo é muito gratificante, principalmente para aqueles que entendem o rock como um meio e não como um fim.

sábado, 22 de novembro de 2008

Dos Mistérios

Afetado o alfinete
Paira absoluto
Refletindo o que
Parece ser através
Do reflexo da redoma
Na sua propriedade
De estagnar o signo
Atravessando o plexo
Do aracnídeo morto
Parece reter o imprevisível
Que se revela sideral
Mas como Antífon
Que escreveu sobre a verdade
Desconhece a própria
Natureza que defende:
As águas não se repetem
Dos Elementos

Os elefantes não esquecem
As abelhas adoçam
O ferro chia
O rádio chia
A chuva de gafanhotos não molha
Os pássaros cantam
Os pitagóricos cantam
O fenômeno altera
Apesar da concreção
Apesar da solidão das portas
Mortas com as maçanetas nas mãos
Das Contentações

Por dois dias Assumpção ali
Sentada naquela pedra
Por dois dias dois séculos
Sobrecarregaram inteiros
Os seus dois ombros

De nada adianta
Renegar de forma alguma
O evadir-se de si
E vê que essa fome não
É nenhuma forasteira

Por dois dias Assumpção ali
E a pedra dentro dela
A expandir por dois séculos
A sua solidez sozinha
sem nenhuma conta paga

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Das Inquisições

Em um gesto sinistro
O Papa Sisto IV olhou-se no espelho
E não viu Deus em seu sorriso
Torquemada viu numa grande fogueira
E depositou ali o seu cajado
E em três velhos motores
Jogados em um deserto
Para quem a morte não tem segredo
Depositou o sopro gélido
De milhares de assassinatos
E eles ficaram ali quase soterrados
Sem ter para onde ir
Tiveram desde então
Pesadelos torpes com uma
Longa estrada e uma tempestade
De gasolina vinda do oriente

E eles foram descobertos
Por uma tribo nômade e recorrente
De achadores de cacimbas
Por trás dos montes tem um
Asfalto quente que leva
Em sete léguas bem tiradas
Ao templo erguido sobre as ruínas
Disse um daqueles seres tão tênues
Para um daqueles curiosos
Que colhia restos como relíquias
E veio um templário
E disse aqui é o pagamento
E veio um membro nobre do
Priorado de Sião e disse
Toda folha que seca
Se quebra em pedaços

E logo chegaram os cátaros
Das terras altas de Languedoc
E disseram eis o Homem com um
Vácuo entre seus dentes
E veio um jesuíta em aparição e disse
exigit sincerae devotionis affectus
para o que ficou em um silêncio
incapaz de mais guardar
e veio o fantasma decadente
de um rei ibérico com um tumor
na próstata e disse já não
posso mais mijar em seus tanques
e fazer mover essas polias
e essas engrenagens em torturas
mas foi uma rezadeira que disse
a verdadeira viagem é para dentro

sábado, 8 de novembro de 2008

Sétimo Céu

Naquele dia, aquele cara que chegou no prédio puxando a solidão por uma coleira, ficou finalmente conhecido. E reconhecido. A fama é o alimento dessa era. Eram nem duas horas da madrugada, ele e os travestis que fazem ponto na esquina, quase em baixo do prédio, fizeram a festa. Cada um a seu modo, como é o hábito dessa era. Vindo de um coronel reformado do exército, crente e temente a Deus, defensor da ordem e da disciplina, que criou os filhos à imagem e semelhança da justiça, foi surpresa geral. Delírio moral é referência dessa era, cheia de rótulos, produtos e leis de mercado. O sêmem ainda escorrendo vacilante põe em dúvida a tese de suicído, que parte da família defende. O cinto afivelado no pescoço com a ponta enrolada na mão esquerda cria mitos existenciais. A boneca inflável jogada ao lado parece insatisfeita e espantada, nunca vira aquilo, sua configuração é de moça recatada. Sessenta e três anos pesam, confiscam todo o ar do velório. A usinagem é a embreagem dessa era. Entre um cafezinho e outro, familiares e amigos do grupo de convivência da terceira idade preparam a versão oficial. De forma clandestina, que é a cara dessa era, falaram em bondage e hipoxifilia. Atribuíram aos travestis, que é gente que não conta, só espalha.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Das Bodegas

Áspera
a fragrância precária
ensaia sonora gargalhada
gorgulhos navegam orgulhosos
em um copo de cachaça
tudo é balcão, arre! Tudo é

uma chuva densa cai lá fora
não se vê muito pela janela
outrora caia ali o corpo de Barnabé
mil demônios o esperavam do lado de lá
há quem diga que de vez em quando ele se levanta
e se aproxima balançando nos bolsos
algumas pedras de gelo

é um ato falho as mãos
procurarem medir com os dedos
e as unhas o medo de um anão
diante da grande vadiagem
é melhor deixar que a carroça
carregue seus ossos sem permissão

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Dos Hemisférios

Por tantos anos
Eu bati naquelas portas
Por tantos anos
Ninguém fez ranger
Nenhuma dobradiça

Por tantos anos
Nenhum grunhido
Dissoluto ao meu redor
Nem por menor que seja
Nehuma fresta compelida

Não vou mais
Alimentar morcegos
Que meus intestinos
Me escutem e que minha
Bexiga seja pertinente

Agora vou cruzar o árido
E o campo dos suprimidos
Vou em busca do vale onde
Dizem que o hipotálamo
Tem um elmo cor de melro

Já de agora olha e vê
Sombreando a floresta
A chapada onde os cavalos
De Aquiles choram por Kaváfis
A morte prematura

Por tantos anos
Estarei lá pisoteando ranhuras
Por tantos anos
Hei de serpentear encostas
Em busca dos idos
Muros

Sem cuidado, sem respeito nem pesar,
Ergueram à minha volta altos muros de pedra.

E agora aqui estou, em desespero, sem pensar
Noutra coisa: o infortúnio a mente me depreda.

E eu que tinha tanta coisa por fazer lá fora!
Quando os ergueram, mal notei os muros, esses.

Não ouvi voz de pedreiro, um ruído que fora.
Isolaram-me do mundo sem que eu percebesse.

Konstantinos Kafávis – 1911
Tradução de José Paulo Paes
Afterglow

O ocaso é sempre comovente
Por mais pobre ou berrante que seja,
Porém mais comovente ainda
É o fulgor desesperado e final
Que enferruja a planície
Quando o último sol mergulhou.
É doloroso manter essa luz tensa e diversa,
Essa alucinação que impõe ao espaço
O medo unânime da sombra
E cessa de repente
Quando notamos sua falsidade,
Como cessam os sonhos
Quando sabemos que sonhamos

Jorge Luis Borges – 1923
Tradução de Josely Vianna Baptista
Dos Mistérios

Os arcanjos e arqueiros
Estão locados entre as pedras
Esperam sem asperezas o meio dia
Retirar suas tolhas de mesa

O terreiro é vasto
Mas os cães dominam o medo
Quando não eles adubam
A terra com uréia desguarnecida

Os ponteiros do relógio
Roçam o tempo com memórias
Não ficamos mais jovens agora
Perdemos os fósforos no escuro

Quem se jogar da janela agora
Vai encontrar espantada
Uma fila de ônibus que espera
Estão todos calados agora

Os cães amofinam
Regojitam o ar das narinas
Sinto o espírito de Francisca
Que volta sem sorrir

Ao que digo sentado sobre
Os calos e os calcanhares
Quem vem lá? Quem vem lá?
É de paz? É de paz?

domingo, 2 de novembro de 2008





Konstantinos Kaváfis
Poemas

Muito se tem refletido sobre a arte praticada nos anos iniciais do século XX, não só pela necessidade natural de uma revisão histórica, mas também pela imensa vacuidade artística da contemporaneidade, em que salvo algumas manifestações artísticas, o que se vê é pura diluição degradada. Dentro desse ponto de vista que nos oferece espelhos para uma evolução urgente, a partir do que é significativo no passado, está a seleção de poemas do grego Kaváfis, com tradução, notas e estudo crítico de José Paulo Paes, relançada pela editora José Olympio, na série Sabor Literário.

Konstantinos Kaváfis, no Brasil, país de pouca leitura e vasta ignorância, não passa de um poeta obscuro, restrito apenas aos iniciados em poesia, a esparsos grupos de universitários ou aos guetos homossexuais, em que alguma louca intelectual goste de exibir em seus lábios trêmulos e afetados, a lascívia latente do poeta se reportando ao seu amor maldito e efêmero, nascido nos cafés soturnos de Alexandria. Nessa seleção, de pouco mais de 70 poemas, é possível perceber, entre outras coisas, que a poesia de Kaváfis tem bem mais facetas do que apenas a sua ousada manifestação homossexual em versos.

Em sua nota introdutória José Paulo Paes demonstra com propriedade as raízes simbolistas e penumbristas do maldito poeta grego. É muito interessante ler esse ensaio literário, uma vez que é possível dimensionar a projeção de Kaváfis em seu tempo e entender como ele foi afetado pelo pensamento corrente. José Paulo Paes faz uma série de analogias entre o estilo libertário e libertino de Kaváfis, com vários estilos de outros poetas contemporâneos do grego.Vale ressaltar das personificações de Fernando Pessoa e Ezra Pound, em relação às personificações criadas pelo poeta Kaváfis.

Além da simbologia, do uso da linguagem e das peculiaridades do metro, da rima e da estrofação, recursos utilizados pelo poeta, são destaques também a textura sutil da crítica social, do existencialismo e a ironia histórica utilizada em livres interpretações. Kaváfis foi contemporâneo de grandes poetas, entre eles, além dos citados, estão Jorge Luis Borges, Yeats, Unamuno, Max Jacob, Guillaume Apollinaire, Paul Valery, Rilke e Manuel Bandeira. Apesar dessa efervescência de estéticas e vanguardas, o poeta resguardou o seu estilo próprio, como fazem aqueles que possuem vozes singulares.

Também é muito interessante perceber como José Paulo Paes se esforça em valorizar os poemas menores de Kaváfis, através do estudo da sintaxe e da escolha lexical, recursos que têm pouquíssimos poderes de conceber uma grande literatura. Mas, de fato, são poucas as sobras contidas nessa seleção. Não por uma questão de estigma ou qualquer outro babado, os poemas menores fazem parte do cânone de temática homossexual. Alguns por serem confessionais demais, em que importam mais o desabafo e não a manipulação da linguagem, e outros por serem efêmeros, sem sustentação diante do tempo.

O legado todo de Kaváfis é de pouca produção, apenas 154 poemas. Mas a importância desse poeta não está na quantidade. Através de uma visão bem particular de compor versos, vários poemas seus entraram na história literária pela porta da frente, com a competência daqueles que são agraciados pela sensibilidade e pelo intelecto. Poemas como “Ítaca”, “À espera dos Bárbaros”, “O Deus Abandona Antônio”, “Idos de Março”, “Termópilas”, “Num Demo da Ásia Menor”, “Teódoto”, “Flores Brancas e Belas como Tão Bem Convinha”, “Ano 200 A.C.” e o surpreendente “Muros”, revigoram o espírito e aprimoram a perplexidade.

Independente de seleções por afinidade ou outro aspecto qualquer, esse é um livro que deve ser sorvido e servido aos poucos. Use-o contra o tédio; para amenizar a chatice de ser o intelectual de plantão; ou para neutralizar a burrice reinante, que tanto nos esforçamos para não fazermos parte, mas basta dar uma olhada ao redor, que é fácil de flagrar caninos errantes.
Dos armistícios

Logo ali
Por trás da garrafa de café
Seca e em pura solidão
Havia uma tensão renomada

Olhos untados na gordura dos bordéis
Passaram-se três dias
Os muros procurando o céu
E tudo o que é pertencido permanece
Mais triste ainda

A cidade tenta se proteger
Dos próprios rastros
Rasteja e se confina em retalhos
Diante do grande portão
Está e esteja sempre com um
Palmo de língua para fora
Salgando os salmos com o suor
Da leitura dos seus saldos

Logo ali
Nas estrias da vigília
Acima dos fracos
E abaixo dos inocentes
Amauri Caolho vê com a sua
Única possibilidade um bando de ratos
Cruzando o bosque de sucatas
Estão indo embora sob nenhuma mira
Já é tarde

Não levaram as pulgas
Deixaram todas para nós
Disse cuspindo em distância
Depois de mascar o próprio siso
Dos Dísticos

Se existe uma palavra
Que não caduca essa é astúcia
Que se arma de finas armaduras
E sórdidas urdiduras
E em veias e músculos próprios
Puxa com mãos próprias
Os próprios cabelos
Do Barão de Munchausen
Diante da areia movediça

Mas, Anacleto de Bertinha,
Eis o perplexo: o universo
Tem lá os seus rigores em suas
Primeiras e últimas moradas
No imenso pátio de um segundo
Ele pode definir tudo
Como o aroma do amor
Nesse café forte que brota
Das entranhas de Gertrudes
A cidade travestida

Katiúscia Priscila, Andressa Kelly, Tabata Regina, Amapola Toda Boa, Berta Lorena, Aline Grandona, Vera Virada, Veruska Bom Bom, são todos nomes de guerra, que trafegam em batalhas noturnas, nas transversais da cidade mais religiosa do Cariri. Em suas rondas noturnas, os travestis conseguiram dar a Juazeiro do Norte um toque de complexidade na maquiagem dessa cidade cheia de complexos.

Quando você se depara com aqueles pequenos grupos de homens transmutados, vestidos com a sensualidade do caricato, expostos à venda - ou troca -, estrategicamente espalhados em lotes demarcados nas esquinas do centro da cidade, você pode ver tudo, menos pouca vergonha, pois esse é um fenômeno que trata da menor escolha. Ali é a própria cidade em toda sua grande extensão. Ali é o processo dialético da cidade em sua urbanidade, em que ela exclui a sua cria bastarda, para depois incluí-la como expurgo em sua lista de traumas indesejados.

Não adianta soltar os cachorros. Não adianta organizar os exércitos da salvação em cruzadas histéricas da moral e cívica, em nome da honra do bem comum. Muito menos é pertinente apontar o dedo para a crucificação de um culpado, para execração pública através do maniqueísmo venal da provinciana mídia caririense. Pois entre um chupão de língua de um travesti e seu cliente desconfiado e a venda de uma falsa garrafa de água mineral benta em tempos de romaria, não existe distância nenhuma. Ambos são comércios. Ambos são frutos da permissividade, a mesma permissividade velada que existe no axioma maior dessa cidade: “aqui se ganha a vida”.

Os travestis existem em todas as grandes metrópoles. Até parece que eles fazem parte do processo de verticalização da cidade, como símbolos fálicos ao avesso, exibindo em sua desafiadora complexidade o desvio mutante da negação da masculinidade e alegoria infértil da afirmação feminina. Os apartamentos, os bares, a rispidez do asfalto, a astúcia do comércio, a tensão do tráfego e o dinheiro no bolso a qualquer preço, são coisas de macho.
Veruska Bom Bom, oferecendo seus silicones sem nenhum pudor, na esquina da rua São Pedro com a rua Do Seminário, é coisa de macho.

Essa cidade, como quase todas, é fatalmente feita para machos, machos dominantes. Da mesma forma assim são os bordéis com suas clientelas embriagadas; a música tosca e degradante que toca nos paredões de sons de 25 mil reais; a cachaça servida com buchada; o ramo da pirataria; a indústria da agiotagem; o futebol na tela clandestina; o amor bandido; o prazer proibido; a pistolagem; o superfaturamento; a sonegação de impostos; a cegueira da justiça; a soberba e a prepotência. São todas coisas de macho e são todas originadas na permissividade. São fatos e fatores dos mecanismos das relações sociais. São pedaços de sucatas que fazem parte do quebra-cabeça dos escombros da humanidade.

Não adianta prender Katiúscia Priscila e ter que soltar Berta Lorena. Não adianta atropelar Tabata Regina com um Honda Civic e ter que amparar pelo Sistema Único de Saúde a invalidez de Amapola Toda Boa. E nem de forma nenhuma amaldiçoar o travesti da esquina mais próxima tendo em casa filhas pródigas, parideiras, prestes a constituírem famílias ante um futuro sempre ameaçador. É preciso conviver sem permissividade. É preciso assistir, não como platéia de uma peça trágica, mas com um olhar de intervenção social.

É necessário que a sociedade, em parceria com os poderes públicos e as instituições não governamentais, atuem na transformação da cidade, antes que ela se torne definitivamente em um monstrengo urbano, sem saídas plausíveis para suas anomalias. O que está em jogo aqui não é a opção sexual em si, mas a prostituição em alto grau de agressividade, seja ela de qual opção sexual for. Para uma abordagem sensata do fenômeno, através do sistema de parcerias são necessários projetos sociais legítimos, que possam retirar essa venalidade sexual das ruas.

No entanto, o que se evidencia aqui são projetos sociais de fato e de direito, elaborados sob o signo da idoneidade e não determinadas parcerias entre organizações não governamentais e o poder público, em que o mesmo caráter de prostituição dos travestis impera. Esses tipos sociológicos são vistos largamente, rondando as instituições públicas com suas maquiagens pesadas, seus trejeitos exagerados, suas agendas lotadas de contatos descolados, e suas bolsas rodadas, prontas para repartirem as comissões.

De fato, a cidade em sua totalidade, não se traveste. Ela é autêntica em sua pluraridade. As suas transversais são próprias. Os olhares que recaem sobre ela é que são viciados em modelos prontos e bem embalados, vendidos sob a ética do comércio de quinquilharias dos seus pequenos e grandes mercados. A recusa não é própria da cidade. Isso é coisa de macho, que exorcisa o pecado segurando o saco, para que a inteligência não vaze e forme uma poça de lama, transformada em balneário pelos seus piolhos.