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segunda-feira, 30 de junho de 2008






THE RACONTEURS, ELES BLEFARAM ?

Vou escrever sobre o primeiro disco deles, “Broken Boy Soldiers”, justamente devido ao lançamento do segundo, “The consolers of the lonely”. Depois de ficar surpreso com o primeiro cd, fiquei ansioso pelo segundo trabalho e fissurado em saber se era só pose ou se o esquemão estava por trás. E eis que os contadores de histórias deram as caras novamente no universo pop.

Há quem diga que eles estão interessados só na diversão, nas drogas e nas mulheres fáceis. Há quem afirme que eles não passam de um monte de branquelos reacionários, tradicionalistas aculturados, que estão apenas restaurando as contas bancárias devido a projetos fracassados anteriormente. Mas há também quem acredite ser o primeiro cd desses pirados um dos melhores lançamentos dos últimos anos. O fato é que não importam as elucubrações, são dois trabalhos bem diferentes.

“The consolers of the lonely”, disponível em cd, vinil, mp3 e download paga ou através da imensa generosidade da rede, cheira a armação da grossa. A maioria das faixas são composições fracas, sem nenhuma inspiração ou nada parecido com “Hands”, por exemplo, do primeiro cd. Existe aí uma clara intenção de atingir um público mais substancial do que o alternativo de sempre. A sonoridade mudou e a pegada também. Ficou mais clara a presença do mainstream, apesar de Jack White e Brendan Benson declararem que não fizeram nenhum tipo de concessão. Faça o download ou escute trechos no myspace e confira você mesmo. Por enquanto sobre “The consolers of the lonely”, não merece mais do que isso.

Já “Broken Boy Soldiers” é outra história e muito bem contada por essa banda de rock’n’roll, liderada por Jack White (White Stripes) e Brendan Benson, guitarras, vocais e composições. Eles se juntaram e levaram o material para o Le Grande Studios de Mathew Ketlee e Brendan Benson, na realidade um pequeno estúdio todo analógico, com maquinário das antigas. O resultado é um direto no fígado da caretice, um dos melhores discos dos últimos anos. Sem espaço para virtuoses ou tentativas imbecilóides de soar como banda que não sabe tocar, só pra ser chamada de indie.

Nas 10 faixas de “Broken Boy Soldiers” o trabalho de guitarras é feito a partir de uma concepção em que o mínimo é mais. Claro que não faltam os timbres valvulados de Jack White e nem o som entrecortado do sinal da guitarra. A escolha dos pedais de efeito é outra sacação desses caras. Fuzz, big muff, Leslie, trêmulo e oitavas alopradas de whami e mudanças de tonalidade são freqüentes. Alguns delays analógicos e reversos também aparecem. Escute por exemplo o mine-solo de “Store bougth bones” e você vai entender.

O disco abre com “Steady as she goes”, um rockão com timbres de fuzz inimagináveis, como se não escuta há tempos. A faixa apresenta também a força dos vocais dos dois guitarristas, com timbres peculiares. “Hands” é sem dúvidas um dos rocks mais poderosos da nova safra, guitarra na frente, com riffs e arpejos muito bem descolados, é pra ser ouvida no talo. “Broken boy soldiers” é inusitada, com um vocal impagável de Jack White é um registro de whami muito legal, além de pontuações de baixo e bateria bem legais. “Intimate secretary” mostra outro arranjo interessante, com ruídos e intervenções de teclados muito bem colocadas. O vocal distorcido aproxima a faixa das experiências modernosas. A primeira metade do disco fecha com uma balada com baixo e bateria na frente e vocais levemente mais altos do que a banda, o que dá um clima verdadeiramente intimista. “Together” é impagável.

A segunda metade abre com “Level”, outra balada, mas com arranjo mais agressivo, com as guitarras aproveitando a distorção natural dos amplificadores valvulados e um solo em oitavas bem legal. “Store bought bones” apresenta um órgão na frente e um solo muito massa, porém ultracurto. “Yellow sun” é uma canção de verão, praticamente acústica, é a que soa mais retrô. “Call it a day” é outra balada, a mais fraca do disco. “Blue veins” inicia com reversão de fitas e depois apresenta uma melodia típica dos filmes de David Linch, com guitarras com trêmulo e timbres valvulados, além de uma letra bem esquisita, no meio tem umas experimentações com delays e fitas, voltando para o clima de balada. Essa é sem dúvidas a melhor faixa do disco, imperdível.

A banda

Jack White - guitarras, vocais e sintetizadores
Brendan Benson - guitarra, vocais e teclados
Jack Lawrence - baixo
Patrick Keeler - bateria e percussão

AINDA MAIS DO MESMO


Entra ano e sai ano e os artistas do Crato continuam ensaiando a mesma cantilena de sempre. A luta por um espaço na ex-pocrato já se tornou lendária e caricatural. Até parece que a ficha é dura de cair. A festa não é mais da cidade, desde que Joquinha abandonou a ladeira; desde que na nascente não nasce mais nada, só morre; desde que água limpa na cascata é só lorota; desde que a capital destituiu a cultura e deixou só o Crato, na ilusão de ser a capital da cultura. Acredito que a luta deva ser outra, através de associações e parcerias.

São muitas as incoerências nessa lengalenga em dízimas. Desde que eu me entendo como gente andar entre as panelas é fazer parte da panelada. Se existe uma crítica veemente contra as atrações que ilustram essa patética desilustração bufa que é a programação da ex-pocrato, por que fazer parte dela? Será que é por causa do público? Justamente aquele que tanto prestigia e espera ansiosamente pelo momento mágico de estrear a roupa nova no show dos Aviões do Forró? Ou será que é a expectativa de mudar inteiramente a qualidade das apresentações apenas com os nomes da “terra”?

Andar de pires na mão desqualifica. E é isso justamente que pesa nessa bagagem da obscuridade, cheia de pedras lascadas. O sentimento de propriedade tanto alardeado não é seguido pela legitimação da representatividade. Falta corpo. Falta corporativismo. Falta politização. Falta o reconhecimento prático dos talentos até entre os próprios artistas, que dificilmente assistem aos shows dos próprios colegas, por exemplo. Até as prostitutas, mediante as humilhações recorrentes, se organizam, por exemplo. Até os camelôs, mediante as ameaças de extinção, se organizam, por exemplo. Até os artistas do Crato, de todos os segmentos musicais... não, esses não se organizam nunca, por exemplo.

Olhar para trás e olhar para trás é o voto de devoção de uma fatia significativa dos cratenses, que se apegam a essa tábua de salvação como o carrapato gruda na orelha do cão que passa o tempo lambendo a própria sombra. O tradicionalismo social e cultural do Crato é uma caixinha de chiclete Adams amassada, jogada entre as pontas de cigarro continental, esperando a última sessão do Cine Cassino. Gastamos tanto tempo olhando para trás que o presente é uma luz que ofusca demais, impede da gente ler a expressão off line escrita em nossa lápide.

Nossas políticas públicas para a cultura, faz tempo, são tão dinâmicas e atuais quanto o carro-de-mão de Noventa, que ainda em fantasmagoria está pronto para carregar no tempo, dando voltas na Siqueira Campos, o nosso orgulho cultural interditado. Agora só nos resta protocolar o dedo paleolítico da inquisição e apontar o orgulho e o bairrismo de outros que organizam publicamente e em parceria eventos como o Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga; o Festival de Inverno de Garanhuns; o Festival de Verão de Ouro Preto; a Mostra Internacional de Música Clássica de Maringá...?

O tempo é outro!!!! Perdemos o bonde das provisões culturais, enquanto tomávamos um cafezinho na cinelândia. Há muito que a cultura existente na ex-pocrato foi emoldurada em um cartão-postal, pronto para ser exposto como ex-voto em um futuro museu dedicado a Elói Teles. Enquanto isso continuamos em busca de falar com o prefeito, com o amigo do governador, com a avó do ex-deputado suplente, com o vaqueiro da vaca parida, para ver a possibilidade de se apresentar às seis horas da tarde ou às cinco da manhã de uma segunda-feira, ganhando um cachê de seiscentos reais, é claro.

Em Recife existe o Abril Pró-Rock, uma iniciativa privada de um festival que começou pequeno, só com atrações da “terra” e hoje tem nomes internacionais em sua programação. Em Natal existe o Mada, um festival de música alternativa que começou com duas bandas do Rio Grande do Norte e duas bandas de Pernambuco, com o advento das associações, hoje é um mega festival. Em Brasília existe o maior festival da música alternativa do Brasil, em que as associações musicais espalhadas por esse sertãozão de Guima, dão suporte e indicam as atrações, com sonorização e iluminação de primeiro mundo, tudo organizado via Internet, por dois garotos, um de 22 e outro de 21 anos. Aqui há de se considerar que a concepção de festival não é aquela do Festival Internacional da Canção, do final dos anos 60.

Mas o Crato é a capital da cultura e a ex-pocrato é mais importante do que rapadura. Aqui nós temos a ex-pocrato e não temos mais engenhos. Mas é aí onde está o doce da tradição. Mais moderno do que isso só mesmo uma possível Associação Benemérita dos Notáveis Cratenses em Defesa da Cultura Popular, que disponibilizará para download na web, por apenas um real e trinta, faixas do último cd da última banda cabaçal, antes da mumificação, minutos antes da hora da graça, já nas Oitavas de Páscoa do ano de São Patrício, o santo protetor da apropriação, como cunharia em cuneiforme o Caminha, que nunca desceu do navio e nunca foi pra aonde.


segunda-feira, 23 de junho de 2008


AS IMPONDERAÇÕES DE POUND

Ezra Pound é um poeta que divide opiniões e sensações. Para muitos ele não passa de um americano fascista desgraçado. Para outros ele é ilegível, ou inelegível para qualquer cadeira da academia, assim o queira a convicção ou a falta de, do eleito leitor brasileiro. Já para alguns ele é o posto, é na poesia aquele que não se substitui, sem jamais ter sido um impostor.

Não importam aqueles que o colocaram em uma jaula, num campo de concentração em Pisa, já com sessenta anos, durante três semanas consecutivas, quando as tropas norte-americanas invadiram a Itália no final da Segunda Guerra Mundial, acusado de traição por ter feito durante a guerra uma série de transmissões radiofônicas, em Roma, consideradas contrárias ao seu dever de lealdade para com os Estados Unidos.

Como também não importam aqueles que o colocaram em um pedestal supremo, concretamente construído pelos irmãos Campos e o grupo Noigrandes, arrebatando dele para o cânone alternativo da palavra, a lavra de consciência obrigatória do autor no fazer literário, nas traduções e na crítica do material poético, devidamente comparado, verso a verso, com as obras que compõem aquilo que ele, Ezra Pound, resolveu chamar de Paideuma, o repositório estético-literário das civilizações.

O que importa é que a obra de Pound é imponderável. Não basta ler a sua obra, é necessário compreendê-lo como um todo, para que se possa dimensionar a grandeza desse intelectual da era moderna. A sua concepção de que a poesia tem três modalidades: Melopéia - aquela em que as palavras são impregnadas por uma propriedade musical que orienta o seu significado; Fanopéia - um jogo de imagens sobre a imaginação visual; e Logopéia - a dança do intelecto entre as palavras; resume a sua própria obra, tão original, tão grandiosa e tão trabalhada lingüisticamente.

Muitos preferem que os seus livros sejam esquecidos e seus poemas não sejam jamais lidos, em detrimento de um sentimentalismo fácil e de um lirismo que parece ter tomando conta de praticamente toda a produção poética universal. Outros se deleitam com o leite eterno da modernidade derramado em flagrantes de colagens literárias, descontínuas e fragmentadas dos seus “Cantares”, obra inacabada, de conotação epicizante, que condensa citações literárias, crítica social, filosofia, bem como personagens e passagens históricas e mitológicas.

Já eu prefiro a engenhosidade inspirada dos poemas guardados para a eternidade no volume auto-intitulado de “Personae”. Neles o poeta se apossa literariamente e literalmente, das personalidades de grandes poetas universais, e faz poesia impregnada de mistério e história, com, fielmente, o mesmo sotaque e o mesmo estilo daqueles poetas escolhidos. São as chamadas vozes literárias de Ezra Pound. Alguns desses poemas fazem parte da manifestação de vanguarda liderada pelo autor, conhecida como “Imagismo”, movimento que também faziam parte T. E. Hulme; F. S. Flint; Hilda Doolittle e Richard Aldington, entre outros.

Dentre esses vários poemas, que são considerados menores por parte da crítica, um me chama por demais a atenção, que é “A tumba em Akr Çaar”, do livro Ripostes, lançado em 1912, paralelo ao Pré-Modernismo brasileiro, durante a chamada república café-com-leite e no preâmbulo da Primeira Guerra Mundial. Esse poema resume toda a genialidade do poeta: seu ritmo estonteante, sua perspicácia com a palavra, suas entrelinhas mal delineadas, seu intelecto privilegiado ao questionar valores e a sua arte suprema de nos levar a um tempo distante, fora do próprio tempo. Aqui está essa peça rara.

A TUMBA EM AKR ÇAAR

“Sou tua alma, Nikoptis, tenho velado
estes cinco milênios, e teus olhos mortos
não se moveram, nem responderam nunca ao meu desejo,
e teus membros leves, por onde em chamas eu saltei,
não incandescem com meu corpo nem com açafrão.

Vê, a relva leve se estendeu sobre teu leito
E te beijou com mil línguas de grama.
Porém não tu a mim.
Tenho em vão decifrado o ouro sobre o muro
E extenuado o pensamento sobre os signos.
Nada existe de novo em todo este lugar.

Tenho sido gentil. Vê: deixei as jarras seladas,
Com medo que acordasse reclamando por teu vinho.
E tuas vestes, mantenho-as brandas sobre ti.

Ah, desmemoriado! Como houvera eu de esquecer?
- o mesmo rio de anos atrás,
O rio? Eras então bem jovem.
E três almas vieram sobre Ti -
E eu vim.
E penetrei em teu corpo e as expulsei.
Tenho vivido intimamente contigo, tenho convivido,
Acaso não fui eu quem tocou tuas palmas e as pontas dos teus dedos,

Penetrou, e através de ti, e até os teus calcanhares?
Como “pude eu entrar”? Não era eu tu em Ti?

E nenhum sol vem descansar minha vigília.
E sou dilacerado pelos mil dentes da noite.
E luz nenhuma cai sobre mim, e tu não dizes
Palavra alguma, dia após dia.

Ah! Que eu poderia fugir para longe, a despeito dos signos
E todo o seu ardiloso lavor sobre a porta.
Para longe, através dos campos verde-vítreos...
Porém tudo está quieto:

Eu não irei.
(Tradução de Augusto de Campos)


O a Deus

Depois que Cícero morreu
Não foi nem o asco do vazio
Nem o azedume inquieto da tamarindo
Que tanto tem testemunhado tudo
Nem muito menos as evoluções imberbes
Do catarro nas narinas dos infiéis
Que parecem procriar lacunas
E cômodos para a acomodação do meretrício
Foram mesmo os dias bastardos aqueles
Esconderijos de metais alumiados
Que dissolveram as soluções
Em soluços e esparsos

Agora o vórtice da chapada
Fornece o friume das ladainhas
E a cor furtiva nas mãos postas das carpideiras
A poucos metros dentro da sala está
O mistério desenhando no descascar das paredes
O mar negro o mar morto e o pacífico
Agora não sobram xícaras virgens
Apenas palavras ermas se renovam e
Despencam da imprecisão
E passam a ciscar no terreiro
O solícito está estendido em branquidão
Guarando sobre as pedras

Mais do que nunca são parcos
Esses dias bastardos sem culhões
Não é sem unhas esse desespero áspero
Que se alumbra feito enfermo de ataque epilético
Há uma notícia ainda guardada no candeeiro
A luz é um véu feito de organdi que diz
Se tu voltar pelo vale do Cariri
Lembra de pagar a estrada com pegadas firmes
Sem que se aborreça o vento só por cuspir
Agora a argila é argola que pode
Prender em seu visgo em vigor
O supremo direito de ir e vir




sábado, 21 de junho de 2008


OS SONHOS SONOROS DE CLEIVAN PAIVA

Há muito tempo que Cleivan Paiva é um dos melhores guitarristas do cenário musical brasileiro. Falta agora o reconhecimento da sua grandeza como compositor. “Sonhos do Brasil” é um cd feito para tirar qualquer dúvida a respeito dessa qualidade genial desse artista piauiense de Simões, mas caririense de coração e adoção.

Muitos afirmam que a música de Cleivan é sofisticada demais, que não é nada popular e que seus discos são feitos para um público específico. Não acredito de forma nenhuma que o verdadeiro artista é aquele que o povão entende ou como querem alguns, que fazer o fácil não é fácil. O verdadeiro artista é aquele que é autêntico em sua expressão, não importa que tipo de arte ele faz ou que estética ele apresenta. Cleivan Paiva é desses artistas que têm a capacidade de suscitar reações diversas, pois a sua arte é viva e autêntica. Quem quiser que o entenda.

Conheci Cleivan nas apresentações do grupo Ases do Ritmo, ao lado de Hugo Linardi, outro gênio, tocando uma guitarra muito esperta, já com uma linguagem jazzística, em pleno domínio da MPB e do rock, durante o período do final dos anos 70 e início dos anos 80. Confesso que sinto saudades daqueles solos memoráveis, com uma timbragem de guitarra mais suja, fora do padrão clean do jazz. Já disse a ele que um dos meus sonhos musicais é produzir um disco dele, instrumental e fusion, usando efeitos como wha wha e overdrive.

Depois eu encontrei Cleivan em São Paulo, em plena forma musical, morando vizinho a Isânio Santos, outro gênio. Fiz inúmeras visitas a ele, junto com Bá Freire, amigo e parceiro musical. Nessas oportunidades eu tive a graça de testemunhar memoráveis improvisos desse mago da guitarra, irrevogavelmente um dos meus ídolos. Sempre que tinha oportunidade eu freqüentava as casas que ele trabalhava como músico da noite. Assisti sempre improvisos geniais nessas oportunidades furtivas.

Mas é em disco que se é possível dimensionar a importância desse músico e compositor. “Sonhos do Brasil” é um apanhado de faixas genuinamente brasileiras, de fato. Nelas Cleivan demonstra toda a sua vertente nordestina, brasileira e universal. São músicas instrumentais e cantadas, divididas ao longo de 17 faixas ao todo. Posso afirmar que esse é um dos principais lançamentos da música livre brasileira dos últimos tempos. Para aqueles que esperavam um disco só instrumental, como eu, fica aqui a compreensão de existir uma necessidade maior de mostrar todas as facetas de um artista que não tem tanta freqüência de gravações.

A faixa que abre o disco, “Dose para leão” é uma síntese da formação musical de Cleivan Paiva, uma composição de harmonia complexa, cheia de acidentes e inversões, com sotaques do cool jazz, do bebop, da bossa-nova, do samba, do chorinho e da música nordestina de raiz. O timbre da guitarra, nessa música, que muitas vezes lembra uma cítara, abre o leque universal desse guitarrista fenomenal. Cleivan, ao longo do disco, ainda usa violões de nylon, às vezes simultaneamente com a guitarra, formando uma cama harmônica extremamente profunda, cheia de aberturas, contra-pontos, acordes de passagens e células de acordes, próprias apenas dos grandes nomes, como Thelhonius Monk e Hermeto Pascoal.

“Pras ondas voar” é uma verdadeira anatomia prática da música popular brasileira. Enquanto você está escutando aquele desfile de acordes dissonidos, você fica imaginando quem é capaz de improvisar em cima daquela harmonia cheia de esquinas e quebradas. Mas ele faz um solo fora de série no final dessa música, demonstrando uma visão toda particular do que é o improviso. Uma verdadeira aula de harmonia e improviso. Que transporta o ouvindo para uma dimensão toda especial da sensibilidade. São cores sentimentais e existenciais de um músico além do normal.

“Tempo certo” e “Para cantar o amor distante” são os destaques das músicas cantadas do repertório. A primeira pelo improviso preciso e primoroso de guitarra. Nessa faixa a banda toca um arranjo complexo, cheio de convenções típicas da música de Cleivan, com destaque para o baixo de João Neto. A segunda pela revisão harmônica surpreendente. Cleivan já havia gravado essa música em seu primeiro disco. Agora a roupagem harmônica é outra, muito mais elaborada do que já era. Além dessas faixas, existem várias outras merecedoras de destaque.

“Sonhos brasileiros” é um disco pessoal, muitas vezes intimista, apenas violão e guitarra. É um disco que apresenta uma visão particular da música de um compositor antenado com o seu tempo. O resultado geral é excelente. Ficando a nota negativa para o processamento eletrônico da bateria de Demontier Delamone. A mixagem geral apresenta um reverb que poderia muito bem ter sido em dose menor. Mas isso não tira em nada o brilho desse trabalho mais do que providencial. Cleivan Paiva é o nome da guitarra brasileira por excelência.

A banda
Cleivan Paiva – voz, violão, guitarra, teclados, surdo, triângulo, pote e baixo
Rainério Ramalho – voz
Demontier Delamoni – bateria e pote
João Neto – baixo
Cícero Percussão – triângulo e caxixi
Beto Lemos – pandeiro e surdo
Roosevelt – efeitos e caxixi
Érica Paiva, Olga Paiva e Bruno Paiva - vocal

segunda-feira, 16 de junho de 2008






UM BLOCO DESAJUSTADO


O ano era 1973. Tempos criminosos aqueles, o terror nas ruas, o medo nas almas de grande parte da população brasileira e a resistência calada pela violência, inventava uma outra língua para se expressar. Esse é o ano que Sérgio Sampaio coloca o seu bloco na rua, com um disco genial, irônico, pessimista e marginal.

“Eu quero é botar meu bloco na rua...” é o primeiro disco de Sérgio Sampaio, impulsionado pelo sucesso da música título no VII Festival Internacional da Canção. O compositor apareceu de fato em um projeto freak chamado Sociedade da Gran-Ordem Cavernista, junto com Edy Star, Miriam Batucada e Raul Seixas. Era o início de uma carreira curta em termos de obras e longa em termos de decepções pessoais e mercadológicas. O talento desse compositor original, nascido em Cachoeiro do Itapemirim, foi interrompido em 1994, vitimado por uma pancreatite aguda.

Antes de tudo Sérgio Sampaio é poeta, daqueles que refletem sobre o seu tempo e o tempo inventado pela existência paralela dos signos. A metáfora do nome de Sérgio em vermelho, sangrando, na capa do disco, revela a urgência daquelas palavras colocadas com a perfeita precisão descontínua de um anátema. O compacto, lançado antes do Lp fez sucesso e vendeu mais de 300 mil cópias, já o Lp fez sucesso de imediato e logo depois caiu na clandestinidade do mercado fonográfico. O que é realmente de se esperar em relação às grandes obras, o que exige raciocínio dificulta a aceitação e a conseqüente conservação no imaginário popular.

A sintomática faixa “Viajei de Trem” projeta o sentimento poético diante da barbárie que os olhos da consciência testemunhavam. “Fugi pela porta do apartamento / nas ruas, estátuas e monumentos / o sol clareava num céu de cimento / as ruas, marchando, invadiam meu tempo / viajei de trem / viajei de trem / viajei de trem, eu vi... / o ar poluído polui ao lado / a casa, a dispensa e o corredor / sentados e sérios em volta da mesa / a grande família e o dia que passou / viajei de trem, eu viajei de trem / eu viajei de trem, mas eu queria / eu viajei de trem, eu não queria / eu vi... um aeroplano pousou em marte / mas eu só queria era ficar à parte / sorrindo distante, de fora, no escuro / minha lucidez nem me trouxe o futuro / queria estar perto do que não devo / e ver meu retrato em alto relevo / exposto, sem rosto, em grandes galerias / cortado aos pedaços em fatias / eu vi... seus olhos grandes sobre mim”

O estranhamento da viagem de trem é o mesmo da vida artística do autor, que travou uma batalha intensa contra o alcoolismo e o anonimato dos anos 80 e 90 e que tentou de várias formas ser respeitado no universo pop brasileiro. A pecha de maldito fez com que as vendagens dos seus discos despencassem e ele fosse rejeitado pelas gravadoras. O mercado fonográfico não tem amor nenhum pelos autores originais. Na realidade o mercado fonográfico é um grande frigorífico que vive de carne nova, que dê lucro imediato e seja descartada em seguida, para dar lugar a mais nova armação. Mesmo assim a obra de Sérgio Sampaio resiste ao tempo, como um manuscrito encantado, que revoga o estereotipo e instaura o re-desejo pela arte.

O disco tem sambas, bossas, baladas, valsajazz, rocks, resquícios de tropicalismo e muita ironia poética. A banda é de feras, com participações mais do que especiais de Piau, Ivan Conti e Zé Roberto Bertrami, o primeiro consagrado ao lado de Luiz Melodia e Tim Maia, os dois últimos consagrados músicos internacionais de jazz fusion com a respeitadíssima Azymuth. Os arranjos ficaram aos encargos de Sérgio Sampaio, Raul Seixas e Zé Roberto Bertrami. A produção é de Raul Seixas, que naquele momento estava com toda a moral do mundo na Philips e foi ele que levou Sérgio para lá, se não num rolava nunca. São muitos os destaques, mas o grande sucesso ficou mesmo por conta da insofismável pérola “Eu quero é botar o meu bloco na rua...”, em ritmo de samba canção, misturado com um pop marginal.

“Há quem diga que eu dormi de toca / que eu perdi a boca / que eu fugi da briga / que eu cai do galho”; “E não peço desculpas / que eu não tenho culpa / mas que eu dei bobeira / e que Durango Kid quase me pegou”; “Hoje está passando um filme de terror / na sessão daz dez, um filme de terror / tenho os olhos muito atentos / e os ouvidos bem abertos”; “Por trás dos edifícios / na cidade moderna / os labirintos negros / prendem os que esperam / a condução ou não”; esses são versos de Sérgio Sampaio, que ecoam para sempre na memória esquecida desse país recolhido em seu menosprezo altista. Mas para encerrar eu escolho justamente os versos que abrem esse disco genial, “No meu sorriso de adeus / vou me fazer de moderno / no meu encontro com Deus / (...) aí meu sorriso de adeus / vou me fazer de eterno / no meu encontro com Deus”.

A banda

Sérgio Sampaio - violão e voz
Piau - violão solo e guitarra
Ivan “Mamão” Conti - bateria
Wilson das Neves - bateria
Alexandre - baixo
Zé Roberto Bertrami - piano e moog
Conjunto “Creme Cracker” - percussão





O UNIVERSO PARALELO DE
FLÁVIO RENE KOTHE

Esse é um cientista da palavra que vai muito além das possibilidades da ciência. A visão crítica de Flávio R. Kothe é mais do que humanista tardia, ou mais do que existencialista imediatista. Ela extrapola o ambiente de gabinete das pesquisas amorfas e vai de encontro à própria força imperiosa e de promulgação da própria academia. Ela desvenda os mecanismos do cânone literário brasileiro com os olhos de um faminto que descobre vestígios de contrações em um naco de pão infectado.

Flávio R. Kothe é autor de mais de 200 livros editados no campo da teoria literária, da semiótica e hermenêutica. Além disso é um tradutor premiado. Já traduziu, entre outros, Walter Benjamim, Theodor Adorno, Karl Marx, Paul Celan e Patrick Süsskind. Mas a sua obra que mais me chama a atenção, e que, sem dúvidas nenhuma, é o seu grande empreendimento teórico é a trilogia (até agora): “O Cânone Colonial”, “O Cânone Imperial” e o “Cânone Republicano I”. Nesses livros o autor gaúcho e livre-docente em teoria literária e literatura comparada, faz a mais completa revisão crítica da historiografia da literatura brasileira.

O objetivo do autor é mostrar para o leitor comum, para o estudante e para o profissional das letras, o que é que está por trás das imposições modelares do ensino de literatura no Brasil. O objeto de estudo é a própria produção literária que é colocada como referência histórica pelo universo acadêmico e pela crítica oficializante. A quem interessa a imposição dos modelos literários, quais os benefícios e quem são os beneficiados pela canonização da literatura brasileira, são tópicos devidamente explicados e desconstruídos com maestria pelo o autor. Esses não são livros escritos pelo calor da crítica aleatória ou destrutiva, são livros escritos através de uma intensa pesquisa de anos e anos. Tudo o que é afirmado aqui é comprovado à luz de uma teoria firmemente fundamentada.

Há quem diga que o desmascaramento da originalidade ou até mesmo da composição de obras tidas como consagradas não interessa a ninguém. Mas é exatamente a quebra dessa barreira institucional que essa trilogia propõe. Saber realmente quem criou, quem copiou, quem roubou, quem diluiu o quê de quem, no cenário literário brasileiro é bem mais importante do que escolher uma obra para leitura apenas movido pelo gosto. Esse é um fator de reconstrução de um olhar sobre os nossos arquétipos intelectuais. Refutar ou não o que está feito é outra função, que não deixará de existir nunca, com ou sem consciência teórica.

Saber que existem inúmeros embustes na criação literária brasileira é profundamente importante para todo e qualquer professor de literatura no Brasil. É uma questão de capacitação, que vai muito além do puro e simples posicionamento cronológico das chamadas escolas literárias, que ultrapassa a comiseração infantilóide da aquiescência inconteste do fator tempo na construção de uma expressão literária brasileira. Aceitar a pobreza artística de incontáveis autores brasileiros, apenas pelo fato de que era o início de tudo e de que alguém deveria começar a estender o novelo no labirinto é tão pernicioso quanto é a intenção de vendagem absoluta das editoras nos tempos atuais.

Ter noção exata de qual é realmente a origem e os embustes de obras como “Canção do Exílio”, “Navio Negreiro”, “O Guarany”, “Dom Casmurro” e “Os Sertões”, entre tantas outras, é ter noção exata das relações de poder que envolvem o cânone acadêmico, seja ele qual for. Quando se tem a verdadeira noção do que é capaz a força de reificação do mundo acadêmico, com suas artimanhas, com suas titulações, e com sua empáfia do conhecimento absoluto, torna-se muito mais possível ser educador.

quinta-feira, 12 de junho de 2008






PSICODELIA EM TEMPO REAL


Em 1969 existia um quê de experimentalismo no cenário artístico mundial. O clima político-econômico insultava a juventude a criar pontes entre a preservação e a destruição. A corrida armamentista, o medo de uma hecatombe atômica e a polarização do mundo entre Comunistas e Democratas; entre conservadores e liberalistas; entre razão e sentimento; entre castidade e sexo livre; proporcionaram uma cena artística plural de encontros e desencontros, sendo a inquietação uma verdadeira palavra de ordem. No meio desse furacão criativo está o disco GAL, o primeiro individual da cantora baiana.

Lá fora a psicodelia; a contra-cultura; a desilusão da beat generation; os ruídos e as colagens da música concreta; o cinismo freak; os minimalismos; o paz e amor do flower power; o criticismo da consciência negra; as palavras incendiárias dos estudantes franceses; os conflitos armados, como a guerra do Vietnã; as reivindicações dos gays em Stone Wall; a conquista do espaço; e a barbaridade das ditaduras militares, como a brasileira, espalhadas pelo mundo inflamavam a verve criativa da música pop. Essa é uma parte do combustível do disco de Gal Costa, que tem como contra-parte a colcha de retalhos do tropicalismo brasileiro, com suas citações da cultura kitch, da bossa nova, da pop art, da ironia do neo-antropofagismo e os reflexos fragmentados e descontínuos de resistência das raízes culturais brasileiras.

Antes mesmo de escutar qualquer faixa do disco você já pode sentir o clima experimental a partir da leitura da nota introdutória de Caetano Veloso na capa do disco, que mais parece um fragmento de um manifesto tropicalista. Os arranjos e direção musical ficaram ao encargo do excepcional Rogério Duprat, uma espécie de procurador geral da estética tropicalista. O disco conta também com a participação do querido maldito Jards Macalé, que toca violão e tem uma música sua gravada com arranjo experimental, “Pulsars e Quasars”.

A banda tem o genial guitarrista Lanny Gordin, destruindo o nexo das possibilidades harmônicas com dissonâncias poderosas e um timbre, que era na época capaz de fazer com que qualquer Jefferson Airplane, qualquer Blue Cheer ou qualquer Grateful Dead, repensassem os seus projetos psicodélicos. Munido de fuzz, wha wha, delays reversos, fitas magnéticas e solos alucinados, Lanny Gordin entra definitivamente pela porta da frente da história obrigatória da música criativa brasileira.

O repertório é baseado em composições de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Jorge Bem, além de “Meu Nome é Gal” de Roberto e Erasmo. O clima é completamente de vanguarda. Ecos, sobreposições de vozes, fitas magnéticas, dissonâncias, colagens e ruídos enchem esse disco de exotismo. Aqui e acolá existe um tom estético passadista, o que é proposital. Gal Costa esbanja técnica vocal, atitude, personalidade, sensualidade e rebeldia. Esse é um disco igual, ou melhor, do que qualquer lançamento internacional do período, hoje considerados clássicos. Esse é um clássico do pop universal. As microfonias e ruídos da monumental “Cultura e Civilização” atestam o quanto esse disco é eterno, o quanto esse disco registra mais do que um lapso da história.

A faixa que abre o disco, “Cinema Olímpia”, além de ser um instantâneo da época é completamente dentro do seu tempo, a par das mais ousadas viagens musicais do universo pop. “Tuareg” é exótica, na linha das narrativas benjorgeanas, com ecos da psicodelia oriental do universo lisérgico da “Frisco” desvairada. “Cultura e Civilização” é um manifesto musical, com linhas de guitarras bem espertas e fragmentos timbrísticos que são geniais em suas despretensões, uma aula oportuna para os fritadores imbecilizados pelas vídeo-aulas. “País Tropical” ganha um arranjo meio tribal, meio minimalista. O arranjo de “Meu Nome é Gal”, com orquestra e guitarras limpas, uma mistura de musak, balada, rock, atonalismo ocasional e experimentalismo é um caso a parte.

As quatro últimas faixas do disco, “Com Medo, Com Pedro”; “The Emprty Boat”; “Objeto Sim, Objeto Não” e “Pulsars e Quasars”, é experimentalismo puro. Vocalizações alucinadas, guitarras malucas, cortes bruscos, colagens, delays reversos, montagens e desmontagens de fitas magnéticas, harmonia dissonante, ruídos e climas mais do que lisérgicos formam a desestruturação necessária do convencionalismo, o que coloca essa obra na prateleira dos discos obrigatórios. Ouvir hoje a música “Objeto Sim, Objeto Não” é ter a certeza que determinadas novidades da música pop brasileira não passam de pura presepada.

A banda

- Rogério Duprat: arranjos e direção musical
- Lanny Gordin: guitarras e baixo
- Eduardo Portes: bateria
- Diógenes Burani: bateria
- Rodolpho Grani: baixo
- Jards Macalé: violão

segunda-feira, 9 de junho de 2008


ESCÂNDALOS ESCALDADOS

Não adianta a patifaria do Rio Grande do Sul, muito menos o primitivismo dos financiamentos de campanha. Paulinho até que deu uma força, abraçando simbolicamente o Congresso Nacional, evidenciando ainda mais a bandalheira dos bancos públicos. De quê adianta Álvaro Lins brincar com máquinas cassa-níqueis, feito um garotinho corrompido pelo crime? As inúmeras quadrilhas espalhadas por esse vidão das autoridades públicas do Brasil têm tentado, têm trabalhado duro na canalhice e em todos os escalões e segmentos. Mas não adianta. Os escândalos já não são mais os mesmos.


Foi-se o tempo em que roubar um milhão dos cofres públicos dava ibope. A decepção é geral. Acho que está faltando um quê de glamour. Os cafajestes não usam mais black-tie. Não apresentam mais aquele ar de marginal burguês que tanto encantava a sociedade brasileira. As melhores filhas das melhores famílias já não se entusiasmam com um desvio qualquer de verbas. Preferem guardar suas vergonhas tão limpinhas de pêlos e tão saradinhas para outros escandalosos. Talvez a grande leva de produtos pirateados tenha infestado o segmento da esculhambação geral tupiniquim. Já não se encontram escândalos legítimos. Daqueles capazes de constranger o espírito católico de Paulo Maluf.


Depois que você vê Inocêncio, o grande mentecapto, pedir averiguação inconteste sobre qualquer falcatrua a Sérgio Moraes, presidente de um conselho de ética, que responde a inúmeros processos, é por que a coisa anda mais do que feia. Pode-se dizer que está decretada a morte oficial do escândalo. Mas isso não pode ficar impune. Alguém tem que ser responsabilizado por tamanha improbidade administrativa. O escândalo é um direito do povo. É patrimônio material e imaterial, dele vivem inúmeras famílias abastadas e inúmeras famílias à espera da abastança. Não se pode encerrar um ciclo assim de forma tão demente. Agora as prostitutas e seus latrocínios; os seqüestradores maníacos; os pedófilos antropofágicos; os assassinos em série; os travestis traficantes; os policiais corruptos; os promotores proxenetas; os juízes falsificadores; os prefeitos dedicados; os vereadores oportunistas; farão o quê da vida? Se não mais existem escândalos eficientes na terra brasilis?


Resta agora esperar as pesquisas com células-tronco, para, quem sabe, resgatar de um desses tubos de congelamento, o verdadeiro escândalo, portentoso e profissional. Enquanto a ciência não acode a sofrida população brasileira, que padece sem o seu escândalo diário ser capaz de ofertar emoções fortes, é necessário instalar imediatamente uma Comissão Parlamentar de Inquérito, para investigar de quem é a culpa.





UMA OBSCURIDADE DE VANGUARDA


“Exposure”, de Robert Fripp, é um daqueles discos que são lançados apenas ocasionalmente. Essa é uma das peças mais esquecidas do chamado rock alternativo, pois esse disco não se enquadra em nada do que se possa taxar como progressivo, como costumam fazer os desocupados.

O que se tem aqui é uma mistura de música ambiental, música concreta, ruídos, materiais adicionados das mais diversas formas, baladas e rock da mais alta qualidade. Esse é um disco para quem entende de estética musical. Não cabem aqui rótulos, essa fórmula imbecilizante da mídia de compartimentar produtos em prateleiras. Mas é necessário que você tenha disposição de entrar em contato com um universo em pleno limite, próximo da tensão máxima. E em alguns momentos, é claro, bem dentro do clima dos desajustados.

Esse é o primeiro disco solo dessa entidade sagrada do rock mundial. Foi gravado em pleno ano de 1977, no âmago da crise da música pop universal. A disco music inundava as rádios com a sua gosma, enquanto que os punks cuspiam para cima e a mídia crucificava o rock progressivo, na esperança de encontrar o paraíso perdido da autodestruição dos seus ídolos fabricados para fornecer escândalos e rara maturidade.

No Brasil era o tempo em que os medalhões já demonstravam cansaço criativo, prenunciando uma série de lançamentos idiotas que inaugurariam os anos 80. Era o tempo em que os componentes da maioria das bandas do chamado Brock poderiam ter valorizado mais os cursos universitários, terem se formado, terem composto famílias saudáveis, assim poupando o vaso sanitário de tanta merda vindoura.

“Exposure” começa com diálogos em surdina seguida de uma harmonização vocal efêmera, para descambar em um telefone tocando a esmo. O que vem em seguida é pura criação abismal. Quem abre o disco cantando “You burn me up, i’m a cigarret” é Daryl Hall, desfazendo aquela imagem de queridinho da música pop, com um rock bem aos anos 50, mostrando que a viagem que vem tem origem lá, no mais puro rock, mas que pode ser adicionada de vários contextos, como as intervenções de ruídos e diálogos na mesma música. Está feita a magia.

“Breatheless”, em seguida, parece ter saído dos discos Red ou Timeless, do King Crimson, com uma paulada de baixo e bateria de tirar o fôlego, além das famosas linhas hipnóticas fripertrônicas nas guittarras. “Disengage” apresenta Peter Hamill cantando em seu estado mais desajustado possível, com uma banda pronta para passar por cima de qualquer cantor desavisado, um peso fora de série. O clima é quebrado magistralmente pela encantadora “North Star”, uma balada cheia de ambiências e climas de ruídos e materiais adicionais, essa paga toda a obra de Fripp. “Chicago”, a próxima, é um blues na voz de Peter Hamill, aparentemente mais comportado, mas só aparentemente.

O bicho começa a pegar logo em seguida, com a esquizofrênica NY3, com um arranjo cheio de intervenções, ruídos, diálogos descontrolados entre pais e uma filha, que brigam pela posse da casa e das responsabilizações psicológicas. O peso continua, baixo e bateria de tirar o fôlego. O clima é quebrado mais uma vez pela voz angelical de Terre Roche, que canta a bela balada “Mary”. Depois vem a música título do álbum, que resume toda a estética do disco: ambiências, ruídos, música concreta, diálogos, materiais adicionados e um vocal demente de Terre Roche, que grita desesperadamente a palavra exposure. Essa é uma verdadeira referência para qualquer um que se meta a fazer música alternativa. Isso é alternativo e não aquele chacundum que os descolados da mídia querem empurrar.

Todas as músicas subseqüentes trazem a marca de “Exposure”, com todos os ingredientes citados e alguns radicalismos a mais, - como é o caso de “Urban Landscape”, música concreta pura - alinhavados por uma banda extremamente competente. O casamento das vozes de Peter Hamill e Terre Roche acontece na impagável “A may not have had enough me but i’ve had enough of you”, uma viagem ao mundo bizarro de Fripp, com Narada Michael Walden quebrando tudo na bateria.

Após duas músicas ambientais, cheias de climas, entra a voz poderosa e dramática de Peter Gabriel, velho amigo de Fripp, cantando a profética “Here comes the flood”, é hora de dar adeus à carne e ao sangue e mergulhar nesse clima inebriante. A faixa perfeita para encerrar uma obra-prima.




A banda:




Robert Fripp - guitars, frippertronics, voice
Daryl Hall - vocals, piano
Terre Roche - vocals
Peter Hammill - vocals
Peter Gabriel - vocals, piano
Tony Levin - bass
Jerry Marotta - drums
Narada Michael Walden - drums
Phil Collins - drums
Brian Eno - synthesizer, voice
Barry Andrews - organ
Sid McGinnis - rhythm guitar, pedal steel guitar

terça-feira, 3 de junho de 2008


PEGADAS NO AR

Tua alma, Guadalupe, de vez em quando
Verte um movimento de mirações,
E o mijo desce por tuas pernas sem que você saiba.

Ainda cabem os camundongos e os dias longos,
Em um cantinho apertado de tua memória.
Há um desespero semelhante, por muito menos,
Quando não há nada para lembrar entre
Uma margem e outra da vida e essas moedas
Soltas, postas sobre a sujeira do balcão.

Mas, que tragédia Guadalupe, o teu corpo
Não foi fechado pela oração que te deram quando
Tu peregrinou pelo sertão do Juazeiro.
Não é uma questão de sorte ou devoção,
Apenas existem dentes que rangem em silêncio,
Mastigando e mastigando e mastigando.

Tua alma, Guadalupe, de vez em quando
Sai por essas frestas que teus cabelos encobrem
E o teu sorriso fica solto dos teus olhos.




UM VENTO INESPERADO

Agora, sem vergonha nenhuma,
Depois que os filhos te deixaram sem rumores
E o fizeram duas vezes, uma com as
Lágrimas evaporadas e outra com
As almas escavadas em palmos para guardar
Em túmulos perdidos os despojos,
Escuto o barulho de tuas palavras
Rebocarem impunes o silêncio das nuvens.

Agora, posta em dúvida a tua valentia,
Aproveita essa sombra que se ergue repentina
E envereda em teus soluços sem olhar para trás
Procura encontrar os invasores e serve
A eles água fria e desaborrece o alpendre
E busca compreender a tua própria ausência,
Pois não é de hoje que os cães estão
Calados, assim deitados em chão profundo.

Agora, enquanto teus devaneios
São descobertos na fronteira entre o
Súbito perplexo e o mais que dolente e bem
Antes que tua paz se submeta à curiosidade
Dos que esperam com paciência,
Prepara a tua última batalha e profere para teus
Bravos soldados perfilados um último
Discurso sobre a velhice da morte.

segunda-feira, 2 de junho de 2008


ÍTACA


Konstantinos Kavafys / Tradução de Jorge de Sena


Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestrogónios, e mais monstros,

um Poseidon irado — não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestrogónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria — nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.





Deves orar por uma viagem longa.


Que sejam muitas as manhãs de Verão,


quando, com que prazer, com que deleite,


entrares em portos jamais antes vistos!


Em colónias fenícias deverás deter-te


para comprar mercadorias raras:


coral e madrepérola, âmbar e marfim,


e perfumes subtis de toda a espécie:


compra desses perfumes o quanto possas.


E vai ver as cidades do Egipto,


para aprenderes com os que sabem muito.





Terás sempre Ítaca no teu espírito,


que lá chegar é o teu destino último.


Mas não te apresses nunca na viagem.


É melhor que ela dure muitos anos,


que sejas velho já ao ancorar na ilha,


rico do que foi teu pelo caminho,


e sem esperar que Ítaca te dê riquezas.






Ítaca deu-te essa viagem esplêndida.


Sem Ítaca, não terias partido.


Mas Ítaca não tem mais nada para dar-te.






Por pobre que a descubras, Ítaca não te traiu.


Sábio como és agora, senhor de tanta experiência,


terás compreendido o sentido de Ítaca.





Esse é um dos poemas mais significativos da história moderna da literatura.


Esse é um poeta genial. Um dos maiores poetas de todos os tempos.





ESSE NÃO FICA VELHO NUNCA


Esse é um dos discos mais malhados de toda a história do chamado rock progressivo. Too old to rock’n’roll too young to die, do Jethro Tull, na realidade não é progressivo e nunca mereceu crítica negativa nenhuma. Depois de A passion play, dentro dos padrões do rock progressivo, também malhado intensamente pela crítica, o Jethro lançou esse diferente álbum de rock.

Os críticos de plantão acharam o título autobiográfico, afirmando que a banda deveria realmente pendurar as chuteiras. Realmente os arranjos desse disco estão num nível muito elevado para os padrões de conhecimento musical da imprensa especializada em rock. O disco tem uma orquestração toda especial de David Palmer, que sublinha toda a história de Ray Lomas, personagem criado por Ian Anderson, para essa história de um velho rockeiro fora de moda.

O disco inteiro é cheio de melodias inspiradas e harmonias que fogem do padrão três notinhas do rock básico, que também funcionam, mas que em momentos são cansativas demais. De fato, quando a coisa aparece mais sofisticada a tendência é afugentar os desprezíveis críticos, escravos do mercado. O amarelo, aquele da historinha, como é mais conhecido pelos fãs, merece muito mais respeito do que tem recebido até agora.

A guitarra de Martin Barre está compenetrada neste disco. Riffs poderosos, timbres limpos e carregados de phase, marcam todos os arranjos. São várias faixas inesquecíveis. Da mesma forma que a crítica baixa o pau, Ian Anderson faz a mesma coisa na crítica através das letras desse disco. Versos corrosivos e poesia pura. Existe um quê de nostalgia nesse disco. As baladas são impagáveis. Big Diper é um dos rocks mais geniais de todos os tempos.

A gravação de Too old to rock’n’roll too youg to die é peculiar. É um verdadeiro exemplo de como as coisas funcionam analogicamente. Aquele reverb bem comportado na voz de Ian Anderson é impagável. Essa é uma sonoridade!! Esse disco é obrigatório pra qualquer um que queira se meter a produzir um disco de rock. Não pelo fato de ser um disco conceitual, mas pelo todo da obra e pela estética geral do disco, esse deve ser ouvido na íntegra. Uma experiência e tanto ouvir esse disco, justamente agora, em que tudo parede fadado à imbecilização do rock alternativo.

domingo, 1 de junho de 2008


MUTANTES AO VIVO: UM MALDITO DE CLASSE


Esse é um disco sacaneado por muita gente. É uma fase dos Mutantes posterior ao disco Tudo Foi Feito Pelo Sol, que muita gente torce o nariz. Alguns afirmam que é rock progressivo cheio de clichês; outros dizem que está longe de ser um autêntico Mutantes e mais um bocado alega que é muito mal gravado. Mas poucos sabem realmente o valor que esse disco tem.

Em entrevista a Guitar Player, Sérgio Dias demonstra guardar muitas mágoas da gravadora e do produtor Peninha Schimidt, que segundo ele, não cumpriram com o planejado para esse disco, que deveria ser um grande lançamento duplo, com embalagem super-luxo, com várias fotos e encarte. Sérgio afirma que a mixagem não foi adequada e muito menos a seqüência de músicas, como também algumas passagens foram estupidamente cortadas. Era uma aparelhagem de última geração para o período. Foi uma temporada de 6 a 9 de agosto de 1976, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.

A banda havia sido reformulada do disco anterior para esse: Sérgio Dias, guitarra e voz; Luciano Alves, teclados e voz; Paulo de Castro, baixo, violino e voz; e Rui Motta, bateria. Grandes nomes do rock nacional e uma puta banda. Na verdade o disco é muito bom, com cada um desses músicos em grande forma. Fora o fato de que realmente é necessário aumentar o som para você sentir o peso, o que se tem é rock de primeira linha.

O disco abre com a belíssima “Anjos do Sul”, que tem uma melodia muito próxima de um mantra, bem ao gosto do período. “Mistérios” é uma verdadeira viagem, com climas de teclados e guitarra com delay e muito reverb. O clima continua com “Trem”, cheia de ecos, preparando para a imperdível “Sagitarius”, que tem uma levada para ser ouvida na estrada, olhando a paisagem.

“Esquizofrenia” é um rock’n’roll típico, com algumas passagens progressivas e mudanças de andamento e solos rápidos de guitarra, já anunciando o que viria depois. Em “Rio de Janeiro” aparecem realmente alguns clichês do progressivo, mas que são neutralizados por um solo de Luciano Alves no sintetizador, que aponta para uma viagem muito inspirada, mas essa é uma das faixas sacaneadas, acaba em fade. Aqui aproveito para mandar Peninha Schimidt à puta que o pariu.

“Loucura pouca é bobagem” é antológica, uma das maiores composições do Mutantes nessa fase, com a guitarra de Sérgio Dias fazendo contra-ponto com o teclado de Luciano Alves, em um dos improvisos mais geniais do rock brasileiro. Sérgio Dias prova que é um dos maiores guitarristas do mundo. Essa música e “Hey Tu”, que tem um andamento mais rápido no solo, formam uma preparação de clima para o solo mais impressionante de todo o disco, em “Rock’n’roll City. Se você quiser saber o que de fato é realmente um guitarrista solo, escute essas três músicas de uma vez. Um registro único.

DOS OPOSTOS


Iguais, no passar dos anos,
São as veredas da noite escura
E da luz do sol, e nenhuma
Inveja a vitória da outra.
Mas somos nós, Eurípedes,
Que respiramos o ar infecto
E mumificamos tuas palavras
Armados de metrônomos
Alucinados e adelíptos.
Somos nós que optamos
Dissecar a súplica sublime.

DAS CORRESPONDÊNCIAS


São três
As armadilhas de Belial:
Devassidão, riqueza, profanação.

São três
As faces do universo:
Natural, humano, divino.

São três
Os elementos do homem:
Corpo, alma, espírito.

São três
As pessoas do divino:
Pai, filho, espírito santo.

São três
As mulheres da balada
Do sabonete araxá:

A mais nua,
A segunda se casasse,
A terceira se morresse.

TESEU E OS SETE ANDARES

“Labrys, acha ou espada de dois gumes,
a que se refere Paulo de Tarso em Hebreus
4:12, é o instrumento com que o herói separa
a alma individual e mortal do espírito eterno
e impessoal” Antônio Forjane




O sol, o sal, o cio.

Onde ando ondas
Descalço, descalculo.

A terra firme, a infâmia.
A fêmea, a fenda, a oferenda.
A dor e o que eleva.

A suave face do alface
Não sua ao fazer
Os oxímoros oxidarem-se
Ao sobrenatural.

O relógio agiota
Vende dados agitados
Ao dedo despido do devir,
Reduzido a reduzir
A sutura da estrutura.

E eu que
Em meu labirinto
Me alimento de cadáveres
E mormente bebo
Da corrente rente, revelo,
Levo-me no velo.

Vejo, sentado na pedra
Possuída pelo silêncio
A gaivota sublimar-se:
Com seu bico feito labrys,
Separar o perecível de si
E retornar eterna para
A devota gaia.


Com essa poesia eu fui classificado
Em quarto lugar no II Prêmio de Literatura
Domingos Olímpio. Era uma fase muito
Mística, que rendeu poemas elaborados,
Cheios de mistérios.